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APRESENTAÇÃO
António Manuel Hespanha
Na Lei Básica da futura Região Administrativa Especial de Macau, a manutenção da ordem jurídica do Território não é encarada como uma homenagem a um qualquer património histórico de cunho português, mas como um dos aspectos do reconhecimento do direito da comunidade macaense ao seu peculiar “modo de vida”.
Isto pressupõe que esse direito esteja enraizado nos hábitos de vida comunitária, que integre a sua vida quotidiana e que, consequentemente, a comunidade nele se reconheça. De outro modo, como discurso meramente teórico ou como “dialecto” de uma estrutura apenas forense ou burocrática, este direito não se manterá. E seria mesmo duvidoso que merecesse manter-se.
São muitos, porém, os factores que contrariam esse enraizamento.
Um delesé, seguramente, a rápida evolução do meio humano de Macau, como território de acolhimento de novas gerações de imigração, muita dela oriunda de zonas chinesas menos próximas ou mesmo das comunidades chinesas de além-mar. Para estes novos macaenses, Macau constitui um mundo cheio de novidades, das quais o ambiente jurídico não será a menor. Tanto na sua dimensão político-administrativa, como nas dimensões dos negócios e, até, da vida pessoal.
O outro factor hostil ao enraizamento comunitário do direito é a diversidade linguística. Na verdade, o direito de Macau é ainda, no essencial, um direito falado em português. O assinalável esforço feito no domínio da tradução jurídica, pouco mais cobre do que a produção legislativa. E, mesmo assim, só a mais recente.
Porém, qualquer jurista sabe que o fundamental do direito, nos sistemas jurídicos europeus-continentais,é constituído, não pelas leis, mas pela doutrina, ou seja, pelo conjunto de conceitos e proposições produzido por juristas com autoridade científica, expostos expressamente nos manuais e nos tratados, mas apenas implícitos nos textos legislativos. Por isso é que o conhecimento articulado de uma ordem jurídica só é possível se se colocarem à disposição do público, especializado e mesmo leigo, textos que, de forma sistemática e adequadamente acessível, forneçam ao leitor os conceitos básicos que constituem a “gramática” das leis e que, ao mesmo tempo, informem sobre as tendências da sua aplicação e dêem conta das críticas de que, no plano da política do direito, elas possam ser objecto.
Combinam-se, nesta vastíssima tarefa, acções que são próprias do ensino jurídico universitário com outras que fogem ao seu alcance tradicional.
A Faculdade de Direito da Universidade de Macau tem procurado cumprir as tarefas universitárias. Assegurando um curso de direito de bom nível pedagógico, razoavelmente atento à realidade de Macau, e que não perde de vista as dimensões doutrinais e teóricas exigidas pelo ensino universitário e que garantam aos seusdocentes e licenciados a participação nos debates em curso na comunidade científica internacional. A sua principal limitação tem sido o não ter podido, até agora, fornecer um curso em língua chinesa. Começando a dispor de juristas bilingues, nela formados, com uma boa preparação na componente portuguesa do direito macaense, é urgente que lhe sejam criadas as condições para poder prestar mais este serviço. Por muito que isso pese, tanto aos que, nostálgica e antidemocraticamente, quereriam conservar, como num museu, um direito linguisticamente puro para o uso de 2% da comunidade macaense, como àqueles que, de forma cientificamente pouco responsável e de duvidosa conformidade com o espírito da Lei Básica, supõem poder ignorar-se a dimensão portuguesa e euro-continental que constitui o suporte doutrinal mais forte da ordem jurídica de Macau.
As restantes tarefas de divulgação do direito de Macau cabem, indistintamente, a todas as entidades responsáveis pelo futuro do território ou interessadas no seu desenvolvimento harmónico e autónomo.
Foi isto que a Fundação Macau em boa hora compreendeu, ao patrocinar uma série de publicações, em chinês, sobre o direito de Macau. Não se ignoram as dificuldades do empreendimento. Teve que se constituir uma equipa especializada, com formação jurídica, conhecimentos bastantes de língua portuguesa e familiarização com as realidades jurídicas de Macau. Tiveram, seguramente, que ser resolvidos complicados problemas de tradução, embora o campo já esteja a ser desbravado pela meritória acção do Gabinete para aTradução Jurídica. Teve que se encontrar um justo equilíbrio entre sistemas de sistematização e modelos de exposição baseados em tradições jurídicas muito diferentes. E, finalmente, teve que se apurar a sensibilidade - e também a humildade - intelectuais e culturais para se entender e valorizar adequadamente “o outro”, já que as diferenças entre o direito português e chinês não são meros problemas de regulamentação técnica, mas também o eco de distâncias culturais muito marcadas, dessas que tanto enriquecem a Humanidade.
Não vai ser, seguramente, nestes primeiros livros, que todas estas questões encontrarão uma resposta definitiva e plenamente satisfatória. Mas tão grande como o mérito de concluir uma tarefa árdua é o de ter ousado iniciá-la. E esse mérito cabe, por igual, aos promotores da iniciativa, dos quais destaco o Dr. Wu Zhiliang que imaginou e coordenou o projecto, como aos autores que rubricarão as obras a publicar.
Lisboa, Agosto de 1995.