A QUESTÃO DA SOBERANIA EM MACAU

CELINA VEIGA DE OLIVEIRA

  Abstract: There are different explanations between China and Portugal concerning the sovereignty over Macau. Starting from the late 18th century, effective administration of Macau gradually fell into the hands of the Protuguese authorities, as compared with the previous years during which ali decisions were made on the basis of bilateral consultations. This was a result of the overall weakening of China’s political power in the 19th century. The present strategy of steady transition has been a result of the need to solve the issue of Portuguese colonization and China’s demand to recover its historical territories.
  O exercício de uma soberania limitada constitui uma constante da presença portuguesa em Macau, presença que, como se sabe, data de meados do séc. XVl, não sendo conhecidos documentos contemporaneos que permitam definir inequivocamente os termos da concessão.
  De qualqer modo, e como sublinhou Almerindo Lessa, uma “conjunção excepcional de circunstâncias geográficas, políticas, religiosas e sociais, tanto nossas como chinesas”, permitiu aos portugueses estabelecerem-se em Macau e aí prosseguirem uma política de ocupação efectiva e contínua que se apoiou numa gestão das relações comerciais adaptada aos condicionalismos locais e num modelo de organização peculiar - o Senado - cuja maleabilidade constitui, a nosso ver, uma das razöes explicativas do estabelecimento permanente dos portugueses em Macau.
  Tal política de ocupação era consentida pelas autoridades chinesas e a prová-lo o pagamento anua] de 500 taéis de prata, denominado “foro do chão de Macau”, o qual constitui o alicerce em que alguns constitucionalistas têm assentado a tese de que o estabelecimento dos portugueses em Macau resultou de uma “cessão por arrendamento”.
  Mas esse consentimento teve sempre subjacente uma interpretação particular da natureza e dos limites do poder exercido pelos portugueses. E de facto, desde os primeiros anos, a História de Macau ?marcada por um dualismo que se reflecte, por vezes de forma conflituat, em todos os aspectos da vida da Cidade - na administração da justiça, no exercício do poder político, nas estruturas religiosas e na própria gestão do comércio.
  Daíque , e apesar das autoridades chinesas terem reconhecido a forma senatorial adoptada em 1583 para o governo da Cidade, cedo se desenhou uma tendência crescentemente intervencionista nos negócios de Macau que atingiu, em meados do séc. XVIII, uma situação de “quase-integração” de Macau no Império Chinês, em consequência de um conjunto de procedimentos administrativos e económicos que vinham a ser adoptados desde o séc. anterior.
  Alguns exemplos: A publicação, em 1613, de um decreto imperial que proibia: - a edificação de novos prédios sob pena de demolição; - a entrada de “qualquer navio no porto de Macau sem prévia medição a fim de pagar o que a lei exigia”; - a admissão de japonesesem Macau; - a prática de escravatura e as actividades de contrabando.
  Em 1621, o Senado da Câmara é obrigado a demolir, por imposição mandarínica, umas casas na Ilha Verde, porque, como justifica, “esta terra em que estamos é dei rei da China”.
  Em 1688, é stabelecida uma alfândega chinesa para a cobrança de direitos sobre as mercadorias, medida que constituindo uma expressão de exercício efectivo de jurisdição fiscal pelas autoridades chinesas, permite integrar a cidade no sistema de controle aduaneiro, criado após a reabertura, em 1685, do comércio da China com o exterior. No mesmo quadro deve ser entendido o estabelecimento, já no séc. XVIII - século em que se acentuam as formas de tutela chinesa sobre Macau - de um contingente para a frota comercial de Macau limitado a 25 barcos, os quais ficaram sujeitos a uma rigorosa fiscalização pelas autoridades mandarínicas.
  No entanto, outras medidas restritivas da acção dos Portugueses são tomadas. Entre elas, a criação, em 1736, de um mandarinato local “com poderes de examinar os criminosos e de lhes infligir um certo grau de castigo” e a publicação, em 1749, de um edital do Suntó ou Vice-Rei de Cantão, contendo certas normas cuja violação levaria o infractor a “ser castigado sem perdão”. Neste edital, “posto em lugar público para todos, assim Europeus como Chinas, saber o que devem guardar”, proibiam as autoridades mandarínicas o seguinte:
  - a construção de casas e igrejas, sob pena de demolição ou venda, “aplicando o preço delas ao risco imperial”.
  - a saída de Macau aos europeus, pois muitos, “velhacos”, “tomando a capa de ir caçar ou vão perturbar os povos das aldeias ou vão solicitar as mulheres”, prática que o Senado deverá proibir, sob pena de ser castigado.
  - o ensino da lei de Deus aos chineses, pois tal lei “corrompe os costumes e os corações”, ficando o que ensina, o que segue a lei e o Senado “sujeitos a castigo consoante o crime de cada um”.
  Nesta conjuntura de permanentes limitações ao exercício do poder, o Senado da Câmara tomou sempre uma posição de conciliação e de cedência face às exigências dos chineses, procurando manter o frágil equilíbrio de interesses conseguido em Macau.
  Em consequência, “qualquer tentativa de afrontamento” protagonizada pelo Governador “estava, por essa época, condenada ao fracasso”. Paradigmático, o caso do Governador Teles de Menezes que, entre 1747 e 1749 assume uma postura de afirmação portuguesa em Macau, o que lhe vale a destituição do cargo pelo Vice-Rei de Goa, pressionado pelo Senado de Macau.
  Como então se afirmava num parecer do Conselho Ultramarino de Lisboa sobre a situação de Macau, em 1750, não havia “provisão alguma do Imperador da China com que possa alegar que de justiça devem os portugueses ser conservados nela; antes em rodas as dúvidas que se movem sobre as execuções das ordens dos Ministros da China se lhes comina logo a pena de despejarem a terra”.
  Reflectindo a situação peculiar do Território e as atribulações da sua História, o estatuto de Macau configurava uma situação de jurisdição mista ou de “soberania dividida”, a qual como sublinhou Charles Boxer “afinal e apesar de frequentes atritos, conflitos, tensões e crises resultara bastante bem com os seus dares-e-tomares durante três séculos.”
  Resposta a esta situação vem, no final do século XVIII, da Rainha D. Maria I. Por iniciativa do seu Ministro da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, são promulgadas em 1783 as “Providências Régias” com que “Sua Majestade deve ocorrer, sem perda de tempo, à situação abatida e estado decadente a que se acha reduzido o importante domínio de Macau”.
  Diagnosticando que tal situação era devida à excessiva concentração de poderes no Senado - “um Senado que a tudo é superior”, como o caracterizou Bocage - e à sua permanente submissão aos ditames dos mandarins, as “Providências Régias” procuram cercear os poderes do Senado, submetendo-o à autoridade do Governador, a quem são dados poderes efectivos para intervir nos negócios da Cidade e na gestão da Fazenda Real.
  Determinavam igualmente as Providências Régias o estabelecimento de uma alfândega portuguesa, a fim de se arrecadarem receitas, cujo regimento viria a ser aprovado por Carta de Lei de 1784.
  No plano das relações luso-chinesas, este documento considerava que o deplorável estado de Macau se devia ao facto de “não haver em Pequim quem represente imediatamente a lmperador ou aos seus ministros os negócios relativos” a este estabelecimento.
  Assim cometia ao Bispo de Pequim a tarefa de se informar dos “privilégios, isenções e liberdades concedidas pelo Imperador da China à Nação Portuguesa, a fim de procurar em Pequim, não só a confirmação das que subsistirem, mas a renovação das que, por descuido, negligência ou outros acidentes se tiverem perdido”.
  Embora numa dinâmica de sentidos contraditórios, pode dizer-se que a tendêcia para a afirmação da soberania portuguesa em Macau se foi gradualmente reforçando, acabando por ter expressão sob diversas formas, já no séc. XIX.
  No plano constitucional , a Constituição de 1822 viria a consagrar o princípio de que o estabelecimento de Macau era parte integrante do território português.
  No plano económico, os portos da Cidade viriam a ser declarados, em 1845, portosfrancos, abertos ao comércio de todas as nações, a exemplo do porto de Hong Kong, abrindo-se o caminho para o ulterior desmantelamento da alfândega chinesa.
  No plano institucional, a afirmação da soberania seria coincidente com um processo de “deslocalização” do poder, que se consubstanciou na degradação de papel do Senado, o qual, seria tranformado, em 1834, numa simples Câmara Municipal, e no correlativo reforço do papel do Governador.
  É nesta conjuntura que tem que se entender a política do governador Ferreira do Amarai, (1846/1849), cuja nomeação havia sido acompanhada de instruções no sentido de defender a absoluta autonomia da Colónia.
  Amarai desenvolveu uma política de confronto, visando destruir os símbolos de presença imperial e os instrumentos por meio dos quais as autoridades chinesas exerciam uma efectiva influência na vida da Cidade.
  Assim, pôs unilateralmente fim ao “foro do chão”; determinou que às autoridades chinesas fosse conferido estatuto de representante de país estrangeiro; mandou remover de lugares públicos os editais de 1749; sujeitou á jurisdição penal portuguesa os crimes praticados por súbditos chineses e impôs, pela força, o encerramento da alfândega chinesa.
  Apesar do seu assassinato em 1849, Ferreira do Amarai contribuiu para criar uma situação que, conjugada com a extrema debilidade da China no séc. XlX- provocada pela derrota da Guerra do Ópio e pela assinatura do tratado de Nanquim em 1842 que cedia Hong Kong aos ibritânicos e abria cinco portos da China ao comércio internacional -, haveria de favorecer, alguns anos depois, a abertura de negociações para a outorga de um instrumento diplomático convencional sobre o estatuto de Macau.
  Tal viria a ocorrer, em 1862, quando representantes dos dois Estados celebraram em Tien - Tsinum “Tratado de Amizade e Comércio entre Portugal e a China”, o qual nunca foi ratificado.
  Só em 1887 e por força da conjunção de diversos factores, em que avultam interesses relativos ao comércio do ópio, foi assinado em Pequim um Tratado, o qual viria a ser finalmente ratificado em 1888.
  Nele, a China reconhecia, pela primeira vez, o exercício de soberania portuguesa sobre Macau, mediante a consagração de três princípios fundamentais:
  - a confirmação pela China da perpétua ocupação e governo de Macau e suas dependências por Portugal;
  - a obrigatoriedade de Portugal nunca alienar Macau e suas dependências sem o acordo da China;
  - a remissão do problema da delimitação das fronteiras para uma convenção especial, devendo até então manter-se sob jurisdição portuguesa os territórios efectivamente ocupados por Portugal no momento da celebração do Tratado (Taipa e Coloane).      
  Tal Convenção nunca chegou a ser celebrada, devido à emergência de ondas nacionalistas que varreram a província de Guangdong.
  Apesar de se questionar a validade do tratado e de serem reivindicados direitos de soberania sobre Macau, o status quo consagrado pelo Tratado de Pequim de 1887 acabou por prevalecer durante a vigência do regime republicano, proclamado a 1 de Janeiro de 1912, e após a fundação da República Popular da China, em 1949.
  Assim, e apesar de algumas vicissitudes históricas a que esteve sujeito, pode-se afirmar que este Tratado abriu um novo ciclo na vida de Macau - o do reconhecimento formal de uma soberania limitada - que haveria de se projectar no estatuto político constitucional do Território.

A QUESTÃO DE MACAU NA POLÍTICA EXTERNA DA REPUBLICA POPULAR DA CHINA


  Apesar de fortemente anticolonialista, a Revolução Chinesa não se repercutiu de imediato em qualquer reivindicação de exercício da soberania em Macau. Porém, acontecimentos posteriores constituiram sintomas claros de que a R. P. C. não reconhecia a situação de Macau.
  Após a visita ao Território do Ministro do Ultramar Sarmento Rodrigues, em 1952, o qual declarou que o estatuto de Macau se iria manter no futuro, a imprensa de Guangdong faz-se eco da posição oficial chinesa:“Macau é Território chinês. O povo chinês nunca esqueceu Macau nem esqueceu o direito de reivindicar o retorno do Território à soberania chinesa” escrevia-se num editorial de um jornal chinês em 1955.
  No entanto, na década seguinte, ao definir os países e territórios coloniais que eram“alvos da revolução”, a China não incluía Macau nem Hong Kong, consagrando-se um princípio de diferenciação em relação ás colónias portuguesas de Àfrica.
  O tempo e o modo do retorno de Macau à soberania chinesa seriam determinados, segundo a posição chinesa, em função de um juízo de oportunidade e com exclusão do recurso à violência, facto que lhe mereceu agudas críticas por parte da União Soviética.
  Os acontecimentos ocorridos em Macau, em 1966, originados por um conflito entre sectores da população e forças policiais a pretexto do embargo da construção sem licença de uma escola, a que seguiu o desencadear de graves motins, destoando neste quadro diplomático, viriam a ter consequências em larga medida irreversíveis.
  A posição táctica de transigência adoptada pelas autoridades portuguesas para salvaguarda da soberania reflectia no fundo, uma situação de grande debilidade. Como concluiu Franco Nogueira, “não éramos soberanos:sob fiscalização alheia, administrávamos um condomínio”.
  Ultrapassada a fase crítica da Revolução Cultural, a questão de Macau viria a ser retomada pela diplomacia chinesa numa linha de continuidade em relação à fase imediatamente anterior.
  Com o 25 de Abril, e no contexto de uma política de descolonização, abrem-se perspectivas para o estabelecimento de um consenso, entre os dois Estados soberanos sobre o estatuto de Macau.
  A formalização do consenso ocorreu aquando do restablecimento de relações diplomáticas em 1979, tendo sido então celebrado um protocolo adicional sobre a questão de Macau, que se manteve secreto por vontade das partes até 1987, e no qual Macau passou a ser considerado território chinês sob administração portuguesa.
  A definição sobre o momento e os termos em que se haveria de concretizar a transferência de soberania foi remetida para ulteriores negociações.
  A Constituição de 1982 da Repûblica Popular da China consagrou o princípio de que o Estado pode estabelecer“regiões administrativas especiais”. Esta solução constitucional correspondia a uma reformulação estratégica da política de reunificação nacional, a qual visara, como ésabido, recuperar os territórios de Taiwan, Hong Kong e Macau.
  O modo de enquadrar territórios de economia capitalista numa pátria socialista foi sabiamente sintetizado por Deng Xiaoping no conceito: um país, dois sistemas.
  Assim, e após complexas negociações, a República Popular da China e a lnglaterra assinaram uma declaração conjunta, nos termos da qual a China reassumiria o exercício da sobernaia sobre Hong Kong em 1997.
  De igual modo, em 1987, foi assinada por Portugal e pela República Popular da China uma Declaração Conjunta sobre a questão de Macau, a qual prevê a transferência da soberania no dia 20 de Dezembro de 1999. vivendo-se actualmente o período de transição, cuja formalização se levará a cabo na Lei Básica.

  Em conclusão:
  1 Portugal e a China produziram leituras diferentes do conceito de soberania sobre Macau.
  2 A administração efectiva, fazendo predominar uma situação de compromisso entre as duas posições, desliza progressivamente, a partir dos fins do século XVIII, para uma afirmação da autoridade portuguesa, como consequência de uma conjuntura global mais frágil do poder chinês verificada no século seguinte.
  3 É na confluência da disponibilização dos limites territoriais históricos por parte da China que resulta a progressiva estratégia de integração que tem tido lugar actualmente em Macau.

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