DISCURSO DO EX.MO SENHOR PRESIDENTE DO TRIBUNAL SUPERIOR DE JUSTIÇA, DR. MANUEL ANTÓNIO MADURO, NA SESSÃO SOLENE DE ABERTURA DO NOVO ANO JUDICIAL*
Permita-me, Senhor Governador,que dirija as minhas primeiras palavras a V Ex.ª, para o saudar e lhe dizer do gosto, e da honra, que os Tribunais de Macau têm em o receber nesta casa.
Sabemos que aqui está no cumprimento de um dever do seu cargo, uma vez que a lei estabelece que a abertura do ano judicial seja assinalada por uma sessão solene presidida pelo Governador do Território; mas também, atrevemo-nos a pensar, com genuíno empenhamento pessoal, para nos escutar e melhor conhecer o estado da Justiça em Macau.E isso é para nós motivo de justificado aprazimento.
A sessão de abertura do ano judicial é um acto solene determinado por lei, não apenas, nem principalmente, para assinalar, com pompa e circunstância, a partida para uma nova etapa na nossa actividade,mas, antes de mais, para sublinhar o peso institucional dos Tribunais e da função que lhes está cometida. E também para nos proporcionar o ensejo de nos apresentarmos perante a colectividade e lhe darmos conta do que fizemos ao longo do ano anterior, dos nossos problemas e dos nossos pontos de vista. É, pois, altura de apresentarmos o nosso próprio relatório.
O poder judicial assume-se nas suas funções, todavia, é de seu natural discreto. Mas, naturalmente, também não se alimenta do silêncio e do recolhimento nem está na sua filosofia de vida um acentuar de distâncias que mais facilmente o defenda ou o isole dos cidadãos. Ao contrário, os Tribunais julgam de portas abertas. As audiências são públicas, em regra, e implicam o debate, a participação de numerosos intervenientes - advogados, testemunhas,peritos, etc.
Toda a jurisprudência do Tribunal Superior de Justiça produzida desde o início do seu funcionamento até ao final do primeiro semestre de 1998 foi publicada e posta à venda ao público em geral, tendo sido expressamente enviada a todas as entidades do Território especialmente ligadas à vida jurídica magistrados, Universidade, Faculdade de Direito, Instituto Politécnico, Associação dos Advogados, Gabinete para a Tradução Jurídica, Agência Xinhua e outras instâncias de Portugal. Uma parte dela é divulgada também pela Revista Jurídica, uma publicação que, sendo da Administração, tem a participação do poder judicial através de um elemento na sua direcção em representação do Conselho Judiciário.
De todo o modo, este é um momento particularmente adequado para vos transmitir uma visão mais global da actuação dos Tribunais ao longo de 1998.
Aqui vão, por isso, as nossas contas.
Em 1998 o Tribunal Superior registou uma distribuição de 203 processos contra 125 em 1993,156 em 1994 e 1995,187 em 1996 e 172 em 1997.Trata-se, como se vê, da maior distribuição anual desde que o Tribunal iniciou as suas funções, no culminar, aliás, de uma tendência que só teve algum retrocesso em 1997 por razões de conjuntura que tive oportunidade de destacar na cerimónia correspondente do ano passado.

Se se fizer a desagregação daqueles números pelas diversas espécies de recursosverifica-se que tem havido uma relativa estabilização do número de recursos cíveis e administrativos e uma subida regular no que respeita aos recursos penais: 72 em 1996, 91 em 1997 e 106 em 1998.
De sublinhar ainda que transitaram para 1999 tão somente 25 processos: destes apenas cinco foram distribuídos antes do início das últimas férias de Verão e 10 só em Dezembro p.p.
Pode pois dizer-se, sem falsa modéstia,que o Tribunal Superior de Justiça alcançou, no ano findo, altos índices de celeridade e eficiência.
Relativamente à 1ª Instância importa considerar, antes de mais, o Tribunal de Competência Genérica, aquele que, pela sua natureza e funções, mais directamente se relaciona com o cidadão comum.
Pois bem, naquele Tribunal continuou em aumento o número de processos cíveis distribuídos ao longo do ano 1.791 em 1998 contra 1.567 em 1997 e 1.462 em 1996. De acentuar, porém,como aliás já acontecera em 1996 e 1997,numa linha perfeitamente regular, que baixou o número de acções ordinárias e sumárias, isto é, grosso modo as acções declarativas, subindo em contrapartida, e em flecha, o número de acções executivas: 544 no total, contra 280 em 1997.
Mais uma precisão: o número de execuções ordinárias, que, como se sabe,são em princípio as que respeitam a maiores quantias, passou de 159 em 1997 para 350 em 1998.
Numa primeira conclusão, baixou o número de acções em que o Tribunal foi chamado a dirimir conflitos e a declarar o direito; aumentou muito significativamente o número daquelas em que o Tribunal foi solicitado, não a declarar, mas a executar coercivamente direitos em princípio já indiscutíveis, ou indiscutidos.
Nas demais espécies processuais cíveis verificou-se uma relativa estabilidade nos planos qualitativo e quantitativo, pelo que se afiguram desnecessárias outras considerações a este propósito.
Na jurisdição criminal houve um decréscimo muito acentuado do número de processos entrados no Tribunal para julgamento, dado que o seu número global foi de 4.498 contra os 5.563 do ano anterior.
Este abaixamento deu-se tanto nos processos da competência dos Tribunais colectivos - menos 839 processos do que no ano anterior - como nos que são afectos nos Tribunais Singulares - menos 305.Apenas em matéria contravencional houve um aumento de 76 processos, inexpressivo em meu critério.
Em matéria de jurisdição de menores o movimento processual ficou próximo do ano anterior, salvo no que se refere aos processos de prevenção criminal, cujo número passou de 155 em 1997 para 204 em 1998.
Sei que manobrar com dados percentuais pode ser enganador quando se opera com valores globais pouco elevados. De todo o modo, não deixo de referir que o aumento verificado rondou os 32%, sendo que estamos a falar de uma área processual de valor sintomático no plano social.
As pendências para 1999 foram obviamente influenciadas pelo movimento de entradas de 1998; assim,o número de processos cíveis que transitaram para o ano já em curso foi de 1799 - mais 248 do que no anterior; em contrapartida, na Jurisdição Criminal o movimento foi inverso: de uma pendência de 1 .770 processos de 97 para 98 passouse de 98 para 99 para 1 .127. Isto é, menos 643 processos.
O Tribunal de Instrução Criminal, em processo de esvaziamento de algumas das suas funções por virtude da entrada em vigor do novo Código de Processo Penal em 1 de Abril de 1997, teve em matéria de instrução uma entrada de 134 processos, passando a pendência de 586 processos em 31 de Dezembro de 1997 para 263 em igual data de 1998.
Para além disso, nos processos em fase de inquérito a cargo do Ministério Público este recebeu, e devolveu após a realização das diligências respectivas, 733 processos para aplicação de medidas de coacção e outras diligências - v.g., autorização de buscas ou gravação de conversas telefónicas -h 230 para 1º interrogatório e 122 para recolha de declarações para memória futura.
Parece-me importante salientar, por um lado, que continuou ao longo do ano, de forma segura, a redução do número de processos pendentes em instrução - nas versões de instrução preparatória ou contraditória para os processos anteriores à entrada em vigor do actual Código de Processo Penal, ou simplesmente em instrução nos termos previstos por este diploma. Por outro lado, importa destacar o número percentualmente muito elevado de casos em que o Tribunal foi chamado a intervir para a recolha de declarações para memória futura. As características do Território explicarão o fenómeno. De todo o modo, a prática judiciária dirá em que sentido evoluirão as coisas nesta matéria.
Relativamente ao Tribunal Administrativo,mantém-se a situação que tracei na cerimónia de abertura do passado ano judicial.
Em matéria de contencioso administrativo, o movimento processual não teve alterações significativas.Entraram mais cinco processos do que no ano anterior, findaram 42 contra 27 em igual período de 1998, transitaram 27 contra os 34 do período antecedente.
No que se refere ao contencioso fiscal houve um aumento de entradas percentualmente muito elevado - 28 processos contra 5 no ano anterior. Nãodisponho de dados que permitam esclarecer se este aumento representa um surto puramente acidental ou, pelo contrário, se corresponde a uma tendência perfeitamente definida.Esperemos para ver.
Finalmente, no que concerne às execuções fiscais nenhuma evolução ocorreu ao longo do ano findo. Mais uma vez a diferença entre o número de processos entrados e o de processos findos foi abissal - 33.582 contra 9.636 -, tendo a pendência para o ano seguinte passado de 65.872 para 89.818 processos.
Senhor Governador, minhas senhoras e meus senhores:
Peço desculpa por vos ter massacrado com esta aridez de números. Pareceu-me,contudo, mais útil fornecer-vos um conjunto de dados objectivos através dos quais Vossas Excelências poderão fazer o vosso próprio juízo acerca do funcionamento dos Tribunais do Território, em vez de trazer-vos apenas,ou fundamentalmente, juízos pessoais,que seriam necessariamente subjectivos e,por isso mesmo, indutores de conclusões cujos fundamentos vos escapariam em grande parte.
De qualquer forma, não me escuso a fazer a minha própria apreciação, e ela vai no sentido de que o ano judicial findo decorreu com toda a normalidade, tendo os tribunais de 1ª instância do Território manifestado um desempenho claramente positivo, sem embargo das dificuldades,hesitações ou erros que toda a obra humana necessariamente comporta. Por outras palavras, cumpriram o seu dever e alcançaram o nível que a comunidade deles podia legitimamente esperar.
O Tribunal de Instrução Criminal,muitas vezes a pegar nos casos penais mais graves, ou de maior repercussão social, quando eles ainda fervem,suportou dignamente as suas responsabilidades, porventura mais visíveis para muitos nos últimos tempos,por razões conjunturais conhecidas. Deu despacho a todas as intervenções a que foi chamado na fase do inquérito e continuou o esvaziamento da pendência no que se refere aos processos em fase de instrução.
O Tribunal de Competência Genérica funcionou também com normalidade.Absorveu positivamente o movimento processual com que foi confrontado; as pendências estão controladas e a marcação dos julgamentos está a fazer-se para prazos que estão dentro da normalidade,isto é, a rondar o mês e meio, segundo os dados de que disponho.
Infelizmente não posso dizer o mesmo do Tribunal Administrativo. Aqui tudo segue a cadência normal no que toca ao contencioso administrativo, fiscal e aduaneiro, mas continua o descontrolo em matéria de execuções fiscais. Já nas cerimónias de abertura do ano judicial de 1997 e 1998 teci, a este respeito,considerações que se mantêm actuais. Não as repito por desnecessárias, até porque julgo saber que o Governo do Território tem o assunto entre mãos. Não resisto,contudo, à tentação de reafirmar que, com as actuais competências e (ou) com os meios de que o Tribunal hoje dispõe, o problema não tem saída.
Ao longo de 1998, o sistema judicial do Território passou a contar com mais doze (12) magistrados oriundos do Centro de Formação, quatro (4) na magistratura judicial e oito (8) na magistratura do Ministério Público. Assim, o número total de magistrados colocados ao serviço do Território, ao nível da 1ª instância, é de dezasseis (16) magistrados judiciais - dos quais seis (6) recrutados à República e dez (10) provenientes do Centro de Formação - e de vinte (20) magistrados do Ministério Público - dos quais quatro (4)são Procuradores e treze (13) Delegados do Procurador, sendo que destes vinte (20), sete (7) provieram de Portugal e os restantes treze (13) do recrutamento local.
Em Março de 1996 os números correspondentes eram bem diversos, a saber, sete (7) magistrados judiciais e nove (9) magistrados do Ministério Público.
Este aumento, verificado nos últimos três anos, pode surpreender à primeira vista. Importa, porém, não esquecer as realidades recentes, designadamente as necessidades de localização e o aumento do movimento judicial, muito forte,ocorrido no mesmo período.
Naturalmente, este acréscimo de trabalho distribuiu-se, horizontalmente,por ambas as magistraturas.
De resto, a justeza do efectivo de magistrados para qualquer território ou País, em certo momento histórico, é algo que não pode encontrar-se a partir de mera operação abstracta, ou mesmo por qualquer ratio com o número total de habitantes do espaço considerado. Ao contrário, haverá sempre uma multiplicidade de factores com que contar, designadamente a extensão das atribuições e competências que para o conjunto dos tribunais ou para cada espécie de tribunal em concreto se queira considerar; a forma como os Tribunais internamente se organizam; as regras de processo com que trabalham; o grau e tipo de intervenção que os magistrados tenham nos processos; o número destes que tenham a julgar; a maior ou menor amplitude que as leis consagram no que concerne ao direito ao recurso; a existência e a natureza de estruturas de apoio técnico aos magistrados na preparação do acto de julgar,designadamente nos tribunais de recurso;as tradições culturais do espaço considerado, e mais. De resto, a experiência histórica aí está para o demonstrar. Por isso, não faz sentido comparar abstracções, sob pena de se cair em resultados de todo desfasados dasrealidades.
Podemos, apesar de tudo, chamar àcolação realidades judiciárias próximas da nossa, e aí sim, encontrar paradigmas que valham para Macau.
Pois bem, o sistema jurídico do Território está no seu essencial moldado sobre o direito português, por sua vez idêntico nos seus traços fundamentais ao direito continental europeu, de cujas raízes se vem alimentando substancialmente ao longo de muitos anos.
Os seus Código Penal e de Processo Penal, de 1996 e 1997, respectivamente,já localizados, portanto, seguem de perto os diplomas correspondentes de Portugal,e, sem querer arriscar demais em faturologia, não creio que a situação venha a ser muito diferente no que concerne aos outros grandes Códigos de Macau, que se anunciam.
Pois bem, nos países de direito continental europeu tende a considerar-se que é uma ratio adequada a de dez (10)juízes por cada 100.000 habitantes.Portugal anda próximo destes números.Em Macau, como é evidente, estamos muito abaixo deles.
Seria demasiado simplista tirar daqui consequências de credibilidade assegurada, mas não deixa de ser uma indicação.
Nos últimos três anos ingressaram nos quadros da magistratura do Território, por recrutamento local, vinte e três (23) novos magistrados, como atrás se disse,repartidos por ambas as magistraturas: três (3) em 1996, oito (8) em 1997 e doze (12)em 1998.
Temos, portanto, um quadro muito jovem.
Não se veja nisto um defeito, tanto mais que, é preciso dizê-lo também, estas novas camadas de magistrados estão motivadas e a trabalhar com empenho e com gosto.Trata-se apenas de uma constatação de facto. E, se é certo que nenhuma instituição que se queira eficiente,estabilizada e de boa qualidade na sua prestação pode dispensar o contributo da experiência que os anos dão - o que é particularmente verdadeiro no desempenho da função de julgar da liberdade, da honra e da fazenda dos outros homens -, então temos de concluir que o actual doseamento de juventude e experiência ao nível da 1a instância funcionou a contento, e é desejável que se mantenha, em nome da estabilidade do sistema e da qualidade da sua prestação.
Falando especialmente da magistratura judicial, não queria deixar de vos dizer ainda que a distribuição da quase totalidade dos novos magistrados pelo Tribunal de Competência Genérica - só um deles desempenha funções no Tribunal de Instrução Criminal - tem a vantagem de os fazer operar com toda a realidade judiciária, que o mesmo é dizer, com todos os tipos de processos e de questões, sem especializações prematuras ou afunilamentos em áreas específicas da jurisdição logo em início de carreira. E sempre - seria escusado dizê-lo - em total paridade de estatuto com qualquer dos seus pares.
Afinal, o que todos desejamos é que os Tribunais se desempenhem com êxito da sua função e que os destinatários da sua actividade - os cidadãos em geral tenham a justiça que legitimamente ambicionam. A todos os níveis da hierarquia judiciária. E designadamente ao nível dos Tribunais da 1ª Instância, os que no seu dia-a-dia têm encontro directo com a vida e que, em boa medida, aos olhos do cidadão comum, dão rosto àJustiça.
Ainda uma palavra para as secretarias judiciais, obviamente estruturas de apoio da maior importância para o bom funcionamento dos Tribunais. Na cerimónia do ano passado, alertei para os graves inconvenientes que resultariam para o serviço se as mesmas viessem a ficar amputadas, a curto prazo, ao nível dos seus lugares de chefia. Entretanto, a Administração tem vindo a fazer um grande esforço, que é justo destacar, no sentido de dotar as secretarias do pessoal necessário. Mas também nesta área me parece importante evitar rupturas bruscas susceptíveis de pôr em perigo o equilíbrio do sistema.
É tempo de terminar. Todavia, peço vénia para saudar ainda os Senhores Funcionários de Justiça, nossos colaboradores indispensáveis nesta missão tão nobre e tão responsabilizante,a todos os níveis de actuação, que é a função de julgar; os Senhores Advogados do Território, na sua contribuição decisiva para a afirmação da Lei e do Direito, e para o prestígio dos Tribunais, e os Senhores Magistrados, meus Colegas, que continuarão, estou certo disso, a desempenhar adequada e serenamente a sua função: a de aplicar as leis e fazer Justiça.
A todos os Senhores Convidados,obrigado pela honra que nos deram por terem vindo.
* Em Macau, aos 22 de Janeiro de 1999.