OPINIÃO



A MEDICINA FORENSE NA CHINA1

* O Heng Va


  Macau encontra-se situado no estuário do Rio das Pérolas, no Sul da China, e passará a ser uma Região Administrativa Especial da República Popular da China depois de 20 de Dezembro de 1999.
  De acordo com o estipulado na Lei Básica, a maioria das leis existentes, próprias de Macau, continuará a ser executada. De qualquer forma, no presente ou no futuro existirão diferenças entre os sistemas legais da China e Macau. Por isso, é benéfico de fortalecer o intercâmbio académico entre ambas as partes, aprofundando-se o conhecimento das pessoas acerca dos diferentes sistemas.
  O presente trabalho destina-se a fazer uma introdução à Medicina Forense na China para os colegas que estejam interessados no trabalho forense aí desenvolvido.

I. A HISTÓRIA DA MEDICINA FORENSE CHINESA


  A medicina forense tem como principal objectivo resolver os problemas relacionados com ferimentos e morte humana, em casos legais. A medicina forense moderna, desde que passou a ser um ramo independente da ciência médica, possui uma história de cerca de 200 anos, mas o trabalho do exame forense, tanto no Oriente como no Ocidente, existe desde tempos muito remotos.
  Na China, que possui uma longa história, a sociedade feudal existe há mais de 2000 anos. As regras sociais, transmitidas em cada geração, consolidaram-se em normas,e para se obter um controlo efectivo do país criaram-se vários tipos de leis. Há cerca de 2400 anos atrás, no início da Dinastia Ching, as leis criminais antigas eram cravadas em vasos de metal, chamados “Trípodes para Registo das Leis Criminais”.
  Em 1975, arqueólogos chineses, ao escavarem túmulos na localidade de Yunrng, na província de Hubei, desenterraram grandes quantidades de placas em bambú de registos provenientes da Dinastia Ching. A partir destas placas de bambu foi possível revelar que, de acordo com as Leis dos Ching, todos aqueles que causassem ferimentos a terceiros, em diferentes graus, seriam punidos devidamente de acordo com a Lei. Uma vez existindo tal estipulação, teria normalmente de haver exame do ferimento. Poderemos dizer, concre-tamente, que estes exames foram o germinar da Medicina Forense chinesa desde os tempos remotos.
  Nas dinastias dos Tang e dos Song (618-1279 AD), estas Leis foram-se aperfeiçoando. Em qualquer caso em que estivessem envolvidos ferimentos, morte ou doença, deveriam os mesmos ser verificados por um oficial especialmente enviado para o efeito.Esta prática transformou-se em sistema. Existiam documentos explícitos definindo o oficial encarregue do exame e as suas responsabilidades, assim como o processo. Para além disso, em 1274 AD, um livro de Medicina Forense foi publicado, com o nome de Casos Injustos Clarificados. Este livro foi aclamado como sendo o primeiro livro sobre Medicina Forense escrito por intelectuais chineses e estrangeiros que se dedicam ao estudo da História da Medicina Forense.
  Song Ci (1186-1249), o autor do livro Casos Injustos Clarificados, era proveniente de Jianyang, na província de Fujian. Em 1217, foi um candidato com sucesso nos exames imperiais ao mais alto nível. Executou as funções de oficial durante décadas, vindo a lidar com numerosos casos criminais. Entendeu profundamente a importância do exame forense. Escreveu a sua própria obra-prima acumulando as experiências dos seus predecessores, integrando as suas própras ideias. Efectuou imensas observações científicas e descobertas sobre fenómenos cadavéricos, tais como asfixia, afogamento, ferimentos, investigação no local do crime, etc. Este livro foi mais tarde revisto e alargado por gerações futuras, sendo divulgado na Coreia em 1384 e depois no Japão.Foi então traduzido para francês (1779), holandês (1862), inglês (1873), alemão e outras línguas europeias.
  A publicação do livro Casos Injustos Clarificados foi, sem dúvida, um momento glorioso da Medicina Forense chinesa no séc. XIII.Mas como, sob o jugo do feudalismo, as autópsias não podiam ser realizadas completamente, nos 600 anos que se seguiram a actividade forense permaneceu estática, realizando-se somente o exame da parte exterior do cadáver. E mais, devido à política da “porta fechada” da dinastia Ching, a medicina forense chinesa, assim como outras ciências naturais, ficou com muito atraso relativamente àquela que se praticava na altura na Europa.
  O erudito que fundou na China a medicina forense moderna foi o professor Lin Ji. Em 1924, deslocou-se para estudar na Alemanha, licenciando-se em Medicina Forense. Depois de ter regressado à China, em 1930, fundou a disciplina de Medicina Forense na Faculdade de Medicina da Universidade de Beiping, a primeira da China. Trabalhou intensamente para disseminar o conhecimento da medicina forense moderna, fazendo contribuições importantes para o desenvolvimento da medicina forense chinesa.

II. EDUCAÇÃO EM MEDICINA FORENSE NA CHINA


  Em 1979, o Ministério da Saúde chinês criou cursos da especialidade de Medicina Forense na Universidade Médica de Sichuan e na Universidade Médica de Chong San, as quais iniciaram o ensino da Medicina Forense numa escala justamente larga. Em 1984, o Departamento de Medicina Forense foi formado por seis Faculdades de Medicina, nomeadamente a Faculdade Médica de Sun Yat-Sen, Huaxi, Shanghai, da China, Tongji e Xian. Todos os anos estudantes de Medicina Forense são inscritos no exame nacional de admissão. O curso tem duração de 5 anos. Depois de terem estudado medicina básica e clínica geral, no último ano os alunos estudam Medicina Forense. Depois disso, vão prestar serviço, durante 3 meses, em regime de estágio, no sistema policial. Ser-lhes-á então concedido o grau de Bacharelato em Medicina.


  

Faculdade de Medicina Legal da Universidade Médica Zhongshan,Guangzhou,RPC.


  A especialidade em Medicina Forense inclui as seguintes disciplinas:
  Introdução à Medicina Forense
  Patologia Forense
  Prova Física Forense
  Medicina Clínica Forense
  Toxicologia Forense
  Análise Toxicológica Forense
  Técnicas Criminalísticas
  Autópsia Forense
  Psiquiatria Forense
  Curso de Jurisprudência
  No Departamento de Medicina Forense da Universidade existem normalmente quatro unidades de ensino e de investigação, nomeadamente as Unida-des de Patologia Forense, de Medicina Clínica Forense, de Prova Física Forense e de Análise Forense de Venenos.
  O Departamento recebe estudantes graduados para obtenção dos graus de Mestrado e Doutoramento, empenhando--se no ensino e na investigação científica e, ao mesmo tempo, mantendo uma relação próxima dos órgãos Judiciais e dos serviços competentes.
  Complementando o Departamento de Medicina Forense na Universidade, o Ministério da Segurança Pública possui o Segundo Instituto de Investigação em Ciências Forenses e a Escola de Polícia Criminal da China.
  Estes órgãos forenses encarregam-se de lidar com grande número de casos criminais e civis e, ao mesmo tempo, também ministram formação em Medicina Forense aos finalistas de cursos nesta especialidade, preparando ainda oficiais forenses para o sistema judicial.
  A fim de permitir que os médicos tenham conhecimento médico-legal, o Estado estipula que todas as Faculdades de Medicina devem ministrar cursos de Medicina Forense como cadeira obrigatória, devendo ter a duração de 50-60 horas.

III. O SISTEMA FORENSE NA CHINA


  Existem diferenças nos sistemas forenses em vários países do Mundo. Mesmo no próprio país, o sistema pode não ser o mesmo em áreas diferentes. Por exemplo, em Inglaterra e no País de Gales pratica-se o sistema do Magistrado Provincial, enquanto na Escócia vigora o sistema do Procurador.
  Presentemente, na China, o sistema médico-legal permite que a Polícia, o Procurador e o Tribunal possuam o seu respectivo médico forense.
  A organização forense do sistema policial é de maior escala, estando sob a administração do Departamento de Técnicas Criminais. Organizacional-mente, encontra-se dividida a três níveis: provincial, municipal e distrital. Existe um relacionamento no âmbito do qual se definem directrizes entre os níveis mais elevados e os mais baixos. Quando um Centro Forense Provincial não puder resolver qualquer caso, o Segundo Instituto de Investigação do Ministério da Segurança Pública será o próximo responsável para o resolver.
  O médico forense da Procuradoria examina os casos sob tutela directa do Procurador e verifica os aspectos relacionados em casos submetidos por outros Departamentos. Se necessário, também participa na inspecção ao local do crime. O médico forense em serviço no Tribunal tem como função principal proceder a exames em pessoas com vida nos casos civis e criminais. Os exames incluem ferimentos, estado mental, estado psicológico, aptidão sexual e identifica-ção de paternidade. Também procede ao exame em cadáveres por mortes naturais nos estabelecimentos prisionais e verifica o cadáver resultante da pena de morte, no local da execução.
  A maioria das autópsias médico-legais são feitas pelo médico forense da Polícia, e os casos de morte resultante de homicídio, suicídio ou morte súbita ficam igualmente a seu cargo. Na China, o Código de Processo Penal estipula que “para os cadáveres resultantes de causas de morte desconhecidas, a organização policial tem o direito de fazer a autópsia e deverá notificar os familiares do falecido”. Esta autorização para a autópsia médico-legal é diferente da de Macau.
  Na China, a análise e ensino da psiquiatria-forense é feita pelo psiquiatra. Se for necessário, será formado um grupo de trabalho por vários especialistas, para posterior avaliação, a fim de ser verificado o estado mental e as várias aptidões legais do examinado (tal como responsabilidade criminal, capacidade de auto-defesa, etc.), e ainda para fornecer provas forenses e opiniões, com vista a que os órgãos judiciais possam julgar o caso.
  Com o aperfeiçoamento contínuo de várias leis e códigos legais na China, aliado à sua continuada política de abertura, estou certo de que o trabalho forense chinês, à semelhança de outras causas, haverá de seguir em direcção ao progresso e à modernização.
  
  Referências bibliográficas:
  
  Introdução Geral à Medicina Forense, compilada por Jia Jin Tao, 1ª ed., 1988.
  Psiquiatria Forense, compilada por Liu Xiehe, 1ª ed., 1997.
  Glossário Inglês-Chinês de Medicina Forense, compilado por Wu Meijin, 1ª ed., 1993.
  
  NOTA:
  1Devido a razões históricas, nas partes II e III o termo “China” refere-se somente ao continente da República Popular da China, e os conteúdos em questão não incluem os de Hong Kong, Macau e Taiwan.

  *Perito Médico-Legal, do Serviço
  de Medicina Legal, do Centro Hospitalar Conde S. Januário (S.S.M.)