O Comportamento SuicidA em Macau

* Jorge Leitão Pereira *J. Armando Baptista Pereira **Maria de Lurdes Rodrigues dos Santos

INTRODUÇÃO


  O suicídio ou tentativa de suicídio constitui invariavelmente uma notícia que inquieta. Cria um misto de perplexidade, de angústia, sentimentos e pensamentos nem sempre claros, nem sempre compreensíveis. Na família atingida, assiste-se ao apareci-mento de certas reacções que podem ir desde a denegação até à procura defensiva de alguém que corporalize a culpa e que, desta forma, liberte o fantasma da responsabilização.
  Dizia Prats (1987) que “não há nenhuma sociedade ou cultura, qual-quer que seja o período histórico considerado, onde não exista suicídio, embora gerido em cada uma delas de forma bem diferenciada, conforme as suas mentalidade e ideologia especí-ficas sobre a vida e o seu valor social e simbólico, sobre a morte e o significado após a morte”1.


  Na cultura ocidental a condenação do suicídio foi cultural e historicamente veiculada pelo cristianismo, com base no facto de que a vida é concedida por Deus e só Ele tem o direito de a tirar. Ainda hoje, em comunidades de grande pendor católico, quem se suicida não tem direito aos rituais da Igreja. Aliás, como refere Dacosta, “foi para evitar que as pessoas se suicidassem que as religiões vestiram a morte de negro e de terror”2. 
  Existem porém culturas em que o suicídio é tolerado e permitido como uma opção passível de ser tomada. A tarefa de o compreender tem sido sucessivamente enriquecida com a abordagem de diversos olhares profissionais (sociológicos, antropológicos, psicológicos, psiquiá-tricos, médicos, etc).
  A definição de tentativa de suicídio tem sido alargada no sentido de incluir certos comportamentos de risco autodestrutivo que são considerados gestos suicidários, tais como: condução de veículos com frequentes acidentes, sucessivos acidentes de trabalho, consumo de drogas lícitas e ilícitas, procura frequente de situações em que se ponha em risco a vida, etc. Assim, entende-se por comportamento suicida - “toda a conduta, em que se verifica um acto voluntário não fatal de automu-tilação ou de auto- envenenamento -”3.
  O problema da intencionalidade do acto, para além de não ser a questão fundamental, é muitas vezes ambíguo. A possível inferência da intencionalidade poderá ser diagnosticada mais pela análise das características do acto em si, do que pelas respostas recolhidas pelo agente num questionário ou entrevista.
  O quotidiano clínico, a percepção da existência deste fenómeno em Macau e a procura de dados objectivos que possam contribuir para o seu melhor conhecimento foram os motivos que conduziram a este estudo.
  Como afirmou o Prof. Daniel Sampaio, “o melhor conhecimento de todo o ambiente em que se desenrola o comportamento suicida, é o passo indispensável para poder organizar e desenvolver acções de prevenção deste jogo com a morte”4.  
  É indubitável que as características regionais, demográficas e sócio-económicas do meio influenciam substancialmente o comportamento das pessoas. Macau é o território com a maior densidade populacional do Mundo (21.000 hab./Km2) e com uma estrutura sócio-económica em permanente mudança. Está a sofrer a influência da transição política da Administração Portuguesa para a Administração da República Popular da China, que terminará em Dezembro de 1999. A população é maioritariamente de nacionalidade chinesa (90%) e apenas 2,8% dos cidadãos utilizam a língua portuguesa como língua base.5 A sociedade, jovem e competitiva, vive maioritariamente dos recursos gerados por uma economia instável e influenciável, ligada ao turismo, jogo, divertimentos e empresas de transfor-mação. As leis sociais não garantem a estabilidade desejada ao nível do trabalho, rendimentos mínimos, saúde e habitação à grande parte da população que não tem o estatuto de residente, embora viva no território. São os ilegais, os trabalhadores temporários ou os familiares destes, que têm vindo a aumentar de ano para ano, aumentando também as deficiências das estruturas de apoio e o mal-estar social.

METODOLOGIA


  Recorrendo a um estudo descritivo, registaram-se durante um ano (1 de Agosto de 1992 a 31 de Julho de 1993) todos os indivíduos que deram entrada no Serviço de Urgência do H.C. S. Januário com o diagnóstico de comportamento suicida já anteriormente definido3.
  No caso de ingestão de medicamentos, considerou-se comportamento suicida quando as doses ou misturas ingeridas ultrapassaram as medicamente recomen-dáveis ou não tinham qualquer sentido terapêutico.
  No momento julgado mais adequado, foi efectuado um questionário a todo o doente com este diagnóstico. Por vezes houve necessidade de o completar, junto dos familiares ou acompa-nhantes do doente, quando este não estava capaz de dar a informação requerida. Este questionário foi adaptado de um estudo sobre comportamento suicida em adolescentes, realizado pelo Prof. Daniel Sampaio em 1991, em Lisboa4. Foi propositadamente redigido nas línguas portuguesa e chinesa, para facilitar a sua compreensão entre os clínicos da equipa de Urgência, que o deviam preencher. Constava de três partes com diferentes caracterizações:
  •parte I - caracterização biográfica;
  •parte II - caracterização social;
  •parte III - caracterização do acto suicida.
  Formulámos as seguintes hipóteses iniciais, que pretendíamos demonstrar ou refutar, e que estavam de acordo com a percepção geral da população sobre esta matéria:
  •Há um predomínio de comportamento suicida nos adultos jovens.
  •O comportamento suicida é pouco frequente nos idosos.
  •O comportamento suicida é um bom indicador de desajuste social na população flutuante.
  •Há uma forte associação entre o comportamento suicida e o insucesso escolar.
  •Há uma forte associação de distúrbios psicológicos com ideias suicidas, anteriores ao presente acto.
  •Há uma forte associação do comportamento suicida com baixos estratos sócio-económicos;
  •O comportamento suicida é um acto solitário que não se acompanha de  publicitação ou anúncio prévio.


APRESENTAÇÃO E INTERPRETAÇÃO DOS RESULTADOS


  1 - Caracterização biográfica
  
  Entre 1 de Agosto de 1992 e 31 de Julho de 1993, deram entrada no Serviço de Urgência do C.H.C. S. Januário 82 casos com diagnóstico de comportamento suicida. Desse total, 25 (30,9 %) eram do sexo masculino e 56 (69,1 %) do sexo feminino, com uma média de idades de 31 anos, tendo 71,6 % entre 20 a 39 anos de idade. De referir a ocorrência de 5 casos entre os 16 e os 18 anos (5 %).
  A maioria dos indivíduos estudados era de etnia chinesa (94 %), naturais de Macau (42%) ou da R.P. da China (38 %) e residentes em Macau há pelo menos cinco anos (74 %).
  Cerca de 49 % dizia-se ateu ou sem religião e aproximadamente o mesmo número frequentou o ensino secundário ou nível superior. Apenas 5 casos (6 %) não tinham frequentado a escola. Como era de esperar, o Chinês foi a língua materna mais frequente (83%). No entanto, a percentagem obtida para a língua portuguesa (6 %) e outras (7 %) foi superior à que se estima existir na sociedade de Macau. Em 1991 (Censo), apenas 2,8 % da população falava Português como língua materna.
  Apenas seis doentes eram adolescentes, todos do sexo feminino, e apenas três se disponibilizaram a fornecer dados ou a responder ao questionário. Os seus pais tinham frequentado o ensino primário, exerciam profis-sões no sector terciário e a família nuclear residia em Macau há mais de 5 anos.
  
  2 - Caracterização social
  
  Dos indivíduos inquiridos e em que obtivemos res-posta, 56,9% eram econo-micamente autónomos e 40% estavam dependentes da família. Cerca de 50,6% viviam em alojamento alugado e 25,3% em alojamento próprio. A maior parte das habitações (64%) possuía entre 4 a 5 divisões, com 2 quartos de dormir em média (57% a 59%). A maioria (80%) confirma a existência de boas condições de habitabilidade, ou seja, cozinha, casa--de-banho, água canalizada e ar condicionado. Registe-se o facto de nesta população não haver indivíduos que habitassem em barracas ou em habitações degradadas, sem água canalizada ou electricidade.
  
  3 - Caracterização do acto suicida
  
  Na caracterização do acto suicida verificamos que 18 (29,5%) sofriam de doença psiquiátrica e 22 (36%) referiram conflitos conjugais como motivo para o acto suicida. Conflitos interpessoais foram apontados em 9 situações (14,8%); por último, surgem os problemas com a/o namorada/o e financeiros.
  Quanto ao dia da semana em que o acto suicida teria ocorrido, não se verifica nenhuma tendência significativa.
  O local escolhido em primeiro lugar foi a residência do próprio em 51 (70%) dos indivíduos, tendo 8 optado por locais públicos (hotel, rua, rio, etc.).
  As circunstâncias que rodearam o acto suicida revelam que a larga maioria (entre 63,2% e 91,8%) não tinha no momento ninguém na proximidade, anteriormente não tinha falado no gesto ou procurado contactar com alguém, assim como não deixou mensagem. Em 42,6% dos casos foi um familiar que os encontrou.
  O meio mais utilizado foi a ingestão de medicamentos, em 42,7%, seguido ex-aequo pela automutilação e ingestão de químicos. Num reduzido número verifi-cou-se a precipitação, e apenas um caso recorreu ao enforcamento numa tentativa de suicídio. Refira-se que este caso deu entrada no hospital e suicidou-se um dia depois pelo mesmo processo.
  Na quase totalidade das situações estudadas (70,7%), o método teria sido escolhido pela acessibilidade, e apenas em 7 (8,5%) a opção teve em conta a eventual eficácia do método escolhido.
  Nos indivíduos que fizeram a ingestão de medicamentos, as benzodiazepinas foram utilizadas em 50% das situações, seguidas dos neurolépticos (9,4%). Na ingestão de químicos, 13 dos 15 casos (87%) recorreram ao Dettol (desinfectante bastante popular em Macau), seguido pelo champô e pela listerina. Apenas em 7 foi associado o álcool, quer em associação com medicamentos (benzodiazepinas), quer com produtos químicos. O Dettol surge uma vez mais em três casos de associação com outros medicamentos.
  Quanto à informação pregressa, pessoal e familiar, 31 indivíduos (45,6%) referi-ram terem tido anteriormente ideias de suicídio e 26 (37%) referiram tentativas de suicídio no passado. Nos 63 que responderam a esta parte do questionário, não se encon-trou uma relação segura com anteriores actos ou tentativas de suicídio na família, amigos ou mesmo por conhecimento através dos meios de informação.
  Tinham procurado apoio médico por problemas psicológicos 21 (31,3%) e tinham conhecimento de pessoas da família em tra-tamento pelo mesmo tipo de problemas 9 (13,6%).
  Quanto aos hábitos de consumo (lícito e ilícito), nos 82 casos estudados, 29 (35,2%) referiram não consumir nada, 27 (32,9%) bebiam habitualmente álcool e 17 (20,7%) consumiam álcool e tabaco. Apenas 8 fumavam tabaco e outros dois fumavam haxixe e heroína.


CONCLUSÕES


  A população estudada é apenas a que recorreu ao Serviço de Urgência do Hospital Conde S. Januário no período de 12 meses. Ficaram por estudar todas as situações que poderiam ter sido diagnosticadas como comportamento suicida mas que, ou não procuraram os cuidados médicos, ou recorreram a estruturas de saúde privadas.
  Dos dados recolhidos verificamos que as mulheres surgem com comportamento suicida duas vezes mais do que os homens. Os adultos jovens (20-39 anos) foram a maioria (71%), sendo rara a ocorrência nos adolescentes (5%) e nos idosos (2%). Os únicos dois indivíduos com mais de 50 anos registados neste estudo eram do sexo masculino e consu-maram o suicídio alguns dias depois.
  Embora a maioria (94%) fosse de etnia chinesa, a percentagem dos que usam o Português como língua materna (6%) é o dobro do que se observa na população de Macau (2,8%). Esta constatação, e o facto de 86% dos indivíduos estudados já residir há mais de um ano em Macau (48,6% sempre residiram), permite-nos concluir que não é a população flutuante ou de residência temporária a mais afectada por este fenómeno. As condições sócio-económicas médias a elevadas parecem favorecer o comportamento suicida, contrariando a nossa hipótese inicial.
  Os motivos mais vezes apresentados como justificativos para este com-portamento foram os conflitos inter-pessoais, nomeadamente os conflitos conjugais. A doença psiquiátrica foi o segundo motivo apresentado, não tendo ocorrido nenhum caso referente a insucesso escolar ou doença física como factores desencadeantes.
  As tentativas de suicídio foram de uma maneira geral (75%) actos solitários e sem publicitação ou anúncio prévio. O meio mais utilizado foi a ingestão de medi-camentos (43%). Para a escolha do método, foi decisiva a acessibilidade e o conhecimento prévio de casos semelhantes.
  Cerca de um terço dos inquiridos confessa ter recorrido anteriormente a apoio médico por perturbações psico-lógicas e ideias de suicídio. Compro-vamos uma percentagem elevada (45,6%) de indivíduos com ideias suicidas anteriores e, da mesma forma, embora em número mais reduzido, com actos suicidas falhados (37%). Não parece ter o mesmo significado desencadeante o facto de existirem casos similares na família, amigos ou através dos órgãos de informação.
  Não se verificou a associação entre o comportamento suicida e o consumo de substâncias ilícitas em fase de dependência. Apenas num caso se pode relacionar o comportamento suicida com o consumo de heroína. É, no entanto, de referir que as definições mais recentes e mais latas englobam o consumo de substâncias ilícitas na definição de comportamento suicida, tendo em consideração o facto de ser um acto voluntário de auto-agressão.


  Referências bibliográficas:
  1 Prats, L., Aspectos Culturais do Suicídio. Psicologia,1987; 5(2):181-187.
  2 Dacosta, F., O Viúvo. 1984.
  3 O.M.S., L' evolution des suicidaires; Raport technique sur la réunion de l' O.M.S. Genebra,1984.
  4 Sampaio, D., Ninguém morre sozinho - O adolescente e o suicídio. Lisboa, 1991.
  5 D.S.E.C., Censo populacional de 1991, Macau, 1992.

  *Consultores de Clínica Geral
  e Peritos Médico-Legais
  dos Serviços de Saúde de Macau.
  **Assistente Hospitalar de Psiquiatria
  dos Serviços de Saúde de Macau.