MAGISTRATURA DO MINISTÉRIO PÚBLICO**
* Alberto Fernandes Brás

Admite-se que o Ministério Público entronca, origina-riamente, nos Procuradores do Rei que no século XIV apareceram em França, coincidindo com a dissolução do regime feudal. É também nesta fase histórica que a administração da justiça começa a obter uma disciplina legal própria e a magistratura em geral a inserir-se no Estado, como uma instituição necessária e consolidada.
É ainda nessa fase que as monarquias sentem a necessidade de instituir junto dos Tribunais advogados e procuradores que garantam a autoridade da coroa. Posteriormente, aos advogados do Rei passará a caber a tutela dos interesses públicos e os direitos patrimoniais da Coroa, ao passo que os procuradores se ocupam da defesa dos interesses sociais.
Na opinião do Prof. Alberto dos Reis, serão estes os lídimos antecessores dos agentes do Ministério Público.
Há também quem diga que em Portugal o Ministério Público surgiu com a criação, por D. Afonso III, do cargo de Procurador do Rei.
E, se vão surgindo ao longo dos séculos cargos como o Procurador dos feitos de El-Rei e da Justiça, o Procurador da Fazenda, os Promotores de Justiça, o Procurador do Rei, a preocupação de organização do Ministério Público começa a surgir em 1871 com o Procurador Geral da Coroa da Fazenda, Martens Ferrão.
Só com o advento do regime liberal é que o Ministério Público começou a assumir uma organização parecida com a actual, o que decorre das reformas de Mouzinho da Silveira, com a organização do Ministério Público de 15 de Dezembro de 1835, da Novíssima Reforma Judiciária, da reorganização de 24 do Outubro de 1901 e do Estatuto Judiciário.
Poder-se-á dizer ainda que a partir de 1901, com aquela publicação, o Ministério Público passa a ter um estatuto próprio que delimita as suas funções, define as formas de relacionamento hierárquico e consagra a sua inde-pendência do relativamente à Magistratura Judicial.
Proclamando conceitos que se estenderam pelos sucessivos diplomas legais que sucederam ao Decreto de 1901, no aludido regimento já se descortinam, com clareza, as três grandes características daquela magistratura: é amovível, responsável e hierárquica.
É com a revolução republicana e a subsequente criação do cargo de Procurador-Geral da República e a aprovação do Estatuto Judiciário, em 1927 (alterado em 1962), que se estrutura e organiza o Ministério Público. Esta ordem perdurará até 25 de Abril de 1974.
Nesta data, deparava-se-nos um Ministério Público amovível, responsável e hierarquicamente organizado, na dependência do poder executivo (cfr. art.º 170, 1, do Estatuto Judiciário), constituindo uma carreira que mais não era do que uma fase vestibular da Magistratura Judicial.
Os quadros superiores do Ministério Público eram também, em regra, juízes nomeados pelo Governo.

A revolução operada em 25 de Abril de 1974 repercutiu-se, como era de antever, na organização judiciária, influenciando também a sua demo-cratização.
Reflexo desse amplo movimento de transformação é a consagração consti-tucional do estatuto próprio do Ministério Público.
De facto, a Constituição da República Portuguesa elaborada em 1976 pela Assembleia Constituinte dispõe nos seus art.os 224.º, 225.º e 226.º (hoje, os art.os 221.º e 222.º) que o Ministério Público goza de estatuto próprio, que a Procuradoria Geral da República é o órgão superior do Ministério Público, o qual é presidido pelo Procurador-Geral da República, e que àquela compete a nomeação, colocação, transferência e promoção dos agentes do Ministério Público, e bem assim o exercício da acção disciplinar (através do Conselho Superior do Ministério Público que a integra).
Como referem Vital Moreira e Gomes Canotilho, a Constituição separava, finalmente, a magistratura Judicial da Magistratura do Ministério Público, o que implicava a existência de carreiras autónomas, para além de deixar concluir que o governo já não poderia agora dar instruções ou ordens ao Ministério Público, uma vez que, nos termos da Constituição, o seu órgão superior era a Procuradoria-Geral da República.
Os constituintes traçavam, assim, os contornos da futura consagração autonómica do Ministério Público.
A definição da nova configuração política e profissional, que a então Assembleia Nacional Constituinte deixou a cargo do legislador ordinário, materializa-se, finalmente, na Lei n.º 39/78, de 5 de Julho (Lei orgânica do Ministério Público), depois substituída pela Lei n.º 47/86, de 15 de Outubro. Aí se define claramente a natureza, fins e funções do Ministério Público.
Em termos estatutários, é consagrado o princípio da autonomia e independência, institui-se o princípio do paralelismo e independência em relação à Magistratura Judicial e estabelecem-se os princípios da hierarquia, da responsabilidade e da estabilidade. Neste sentido, importa salientar que os magistrados não podem ser transferidos, suspensos, promovidos, aposentados ou demitidos, senão nos casos previstos na lei.
É consagrado pelo legislador ordinário (Lei 39/78 e 47/86) o princípio da autonomia em relação aos demais orgãos do poder central, regional e local, caracterizando-se esta pela vinculação do Ministério Público apenas a critérios de legalidade estrita e de objectividade, e sujeitando-se os magistrados apenas às directivas, ordens e instruções previstas na Lei (39/78 e 47/86).
Como facilmente se observa, a Lei Orgânica do Ministério Público já consagrava a autonomia desta magis-tratura, mas importava que a Constituição também o fizesse.
A consagração constitucional tradu-ziria, assim, o atingir de um estado de segurança, por contraponto à débil consagração feita pela Lei Ordinária, bem mais fácil de alterar ou rever do que o texto constitucional. Essa consagração Constitucional surgiu com a revisão da Constituição de 1989 (L.C. n.º 1/89), que, aglutinando os art.os 224.º e 225.º no art.º 221.º, introduz no n.º 2 deste preceito que o Ministério Público goza de autonomia nos termos da Lei.
Eis, em resumo, o percurso seguido pela Magistratura do Ministério Público em Portugal até aos nossos dias.
O enquadramento legal do Ministério Público efectuado na República sempre teve uma correspondência quase integral no ex-Ultramar português e, conse-quentemente, no Território de Macau.
Com reduzidas e irrelevantes dife-renças, vigorou em Macau, até à publi-cação da Lei 39/78, o Estatuto Judiciário do Ultramar, que correspondia ao Estatuto Judiciário em vigor na República. Um diploma legal único para ambas as magistraturas - a judicial e a do Ministério Público - e que continha regras comuns e específicas a cada uma das magis-traturas. O que hoje, de resto, também sucede na Lei n.º 112/91, de 29/8 - Lei de Bases de Organização Judiciária - e que melhor regulamentará, nesta parte, o Dec.-Lei n.º 55/92.
A Lei n.º 39/78, de 5 de Julho, foi colocada em vigor em Macau, tendo sido publicada em Boletim Oficial de 24 de Março de 1979. Igual procedimento se adoptou em relação à Lei n.º 47/86, de 15 de Outubro, ainda vigente na República.
Entretanto, a Declaração Conjunta Luso-Chinesa impôs a criação no Território de orgãos próprios de Administração de Justiça. Ou seja, ditou a adopção de um sistema judiciário próprio do Território.
É neste contexto que a Assembleia da República aprova e faz publicar a Lei 112/91 - Lei de Bases de Organização Judiciária.
Percorrendo esta Lei, e ainda a Constituição da República Portuguesa, logo se constata:
-a qualificação dos agentes do Ministério Público como magis-trados;
- a atribuição ao Ministério Público de estatuto próprio e de autonomia (ver Constituição da República Portu-guesa após 1989) e o desempenho de funções que lhe forem atribuídas com independência e livre de qualquer interferência;
-a consagração do princípio da estabilidade e da inamobilidade;
-a estruturação hierárquica do Ministério Público, segundo as categorias de Delegado-Procurador e Procurador-Geral-Adjunto, e a proclamação do princípio da responsabilidade;
- a elencaricação das atribuições do Ministério Público, de que se destacam a direcção de investigação criminal, o exercício da acção penal, a representação do Território, dos incapazes, dos ausentes e dos orgãos de Polícia Criminal e a defesa da independência dos Tribunais.
É, pois, possível inferir que o Ministério Público se encontra enquadrado legalmente por forma a ser--lhe permitido o desempenho das funções que lhe são cometidas com dignidade e independência.
Assim sendo, e indo de encontro ao pensamento do ilustre Prof. Figueiredo Dias, o Ministério Público é um órgão autónomo da administração da justiça, relacionado funcional e ma-terialmente com os Tribunais, dotado de estrutura e organização próprias e incondicionalmente submetido à descoberta da verdade e à realização da Justiça. Move-se, por conse-guinte, segundo critérios de estrita legalidade e objec-tividade.
Tal como afirma ainda o Conselheiro - Procurador Geral da República - Dr. Cunha Rodrigues - o Ministério Público, no exercício das suas funções, erigirá a segurança como pressuposto da liberdade, relevará adequadamente a vítima, como titular de bens merecedores de protecção penal, e contribuirá para que o estado seja garante do direito de todos participarem na vida pública.
Calamadrei defendia também que o mais difícil dos cargos judiciários é o do Ministério Público, pois este, como sustentáculo da acusação, deveria ser tão parcial como um advogado, e como guarda inflexível da lei deveria ser tão imparcial como um juiz.
“Advogado sem paixão, juiz sem imparcialidade, tal é o absurdo psicoló-gico no qual o Ministério Público adquirirá o sentido do equilíbrio, momento a momento, a perder, por amor à sinceridade, a generosa combatividade do defensor ou por amor à polémica, a objectividade sem paixão do Magistrado”.
Localmente, e a propósito, convirá frisar que na Lei Básica da Futura Região Administrativa Especial de Macau se verifica que o processo de nomeação dos agentes do Ministério Público difere, no essencial, do ora vigente.
Ou seja, prevê-se aí que o Procurador seja nomeado pelo Governo Popular Central, sob proposta do Chefe do Executivo, e que os Delegados do Procurador sejam indigitados pelo Procurador. Uma fórmula que, convenhamos, poderá alimentar reservas quanto à garantia de independência do Ministério Público face ao Executivo. Acentue-se ainda que a Lei Básica prevê a redução de uma categoria hierárquica vigente. Ou seja, apenas existem o Procurador e Delegados do Procurador.

Já no âmbito da formação, é sabido que o acesso à Magistratura Judicial e do Ministério Público, nas categorias de Juiz e de Delegado, depende da frequência, com aproveitamento, de um estágio de formação (cf. art.º 23.º do D.L. 55/92/M, de 18 de Agosto, e art.º 18.º da Lei 112/91, de 29 de Agosto), ora regulado no Dec-Lei n.º 6/94/M, de 24 de Janeiro.
Aí se cria o Centro de Formação de Magistrados de Macau, estabelecendo--se os requisitos de admissão, discipli-nando-se o processamento desta e estruturando-se o estágio de formação.
Importa sublinhar que entre os requisitos de admissão constam os pressupostos normais que condicionam o exercício de funções públicas: a licenciatura em Direito, devidamente reconhecida, o conhecimento das línguas portuguesa e chinesa bem como a residência no Território há pelo menos 3 anos. Requisitos que demonstram bem a preocupação do legislador em valorizar adequadamente o conhecimento das realidades do Território e o domínio das línguas necessárias à consecução do imediatismo na actividade dos Tribunais.
A tarefa que cabe ao Centro de Formação de Magistrados de Macau afigura-se-nos de elevada responsabilidade. Desde logo, porque sobre si recai a obrigação de preparar Magistrados que garan-tam, em breve, o normal funcionamento dos Tribunais e que viabilizem ainda a continuação em Macau do sistema jurídico vigente.
No âmbito da formação, aquele órgão defrontar-se-á, seguramente, com as exigências normais de qualquer acti-vidade formativa, mas no caso vertente, onerada com algumas especificidades.
Na verdade, sendo certo que o direito também é cultura e que se pretende que o direito vigente perdure, a formação não poderá alhear-se da referência ao envolvimento sociológico, ético e económico que ajudam à compreensão e interpretação do direito. Uma vertente que em Macau atinge especial acuidade, tendo em conta a formação originária dos eventuais candidatos a Magistrados do Ministério Público.
O Centro de Formação de Magistrados, para além do desempenho habitualmente exigido a uma Escola, haverá de constituir um espaço de discussão e debate de matérias que integram o mundo cultural no qual se inscreve a sua actividade profissional.
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* Procurador da República
**Comunicação apresentada no Seminário sobre Formação e Carreiras Jurídicas, na Universidade de Macau, em Maio de 1995.