PASSAPORTES E NACIONALIDADE
* Eduardo Margarido

INTRODUÇÃO
Nos últimos anos tem-se assistido ao crescente aparecimento de sociedades comerciais e consulados em Macau e Hong Kong que, mediante processos que pressupõem a transferência de capitais, nomeadamente para depósitos bancários e aquisições imobiliárias, possibilitam como contrapartida aos interessados a emissão de passaportes que conferem a nacionalidade dos Estados que representam.
Tal situação aconselha à pesquisa da validade de tais procedimentos e recomenda que se determine a aceitação dos documentos de viagem assim emitidos nas relações entre Estados, pelo que importa proceder ao seu enquadramento técnico-jurídico do ponto de vista do direito internacional.
Como metodologia de raciocínio, optouse por aferir a legitimidade de emissão desses passaportes por parte dos Consulados, maxime os honorários, em face da Convenção de Viena Sobre Relações Consulares de 24/4/1963, tendo-se posteriormente pesquisado, em autorizada doutrina e jurisprudência, a existência de princípios ou regras costumeiras que, tendo generalizada aceitação na comunidade internacional, permitissem balizar juridicamente a questão do ponto de vista do direito internacional.
A CONVENÇÃO DE VIENA SOBRE RELAÇÕES CONSULARES DE 24 DE ABRIL DE 1963
No início da década de 60, a necessidade de assegurar o desenvolvimento de relações políticas e comerciais entre os Estados, de forma cordial e pacífica, levou à celebração de várias convenções com vista a definir o estatuto com que os representantes dos Estados exerceriam as respectivas missões no território de outros Estados. Enquadrando-se nesta linha de desenvolvimento das relações internacionais, no âmbito e como consequência da Conferência das Nações Unidas sobre Relações e Imunidades Diplomáticas, foram assinadas em Viena a Convenção sobre Relações Diplomáticas, de 18 de Abril de 61, e a Convenção sobre Relações Consulares, de 24 de Abril de 63.
Tendo tido ampla aceitação por parte da Comunidade dos Estados, que se traduz no facto de terem sido ratificadas praticamente pela generalidade dos Países do Mundo, sendo insignificante o número daqueles que o não fizeram, estes instrumentos convencionais tornaram-se importantes fontes imediatas de direito internacional na matéria sobre a qual se debruçaram.

Neste âmbito, e relativamente àquilo que nos interessa, a Convenção sobre Relações Consulares visava, além do princípio já atrás explanado, o estabelecimento de postos consulares de um Estado noutro Estado receptor, de acordo com o princípio da reciprocidade, que se destinavam a"proteger no Estado receptor os interesses do Estado que envia e dos seus nacionais, pessoas singulares ou colectivas, dentro dos limites permitidos pelo Direito Internacional" (Art. 5º, alínea a) da citada Convenção).
Refira-se, a este propósito, que a convenção sobre relações Consulares viu o seu âmbito de aplicação alargado ao território de Macau pela publicação no Boletim Oficial número 45, de 10 de Novembro de 1973, do D.L. nº183/72, que a aprovou para adesão.
Nessa Convenção, definiu-se uma série de privilégios e imunidades consideradas essenciais para que os postos consulares e os membros que lá prestassem serviço pudessem levar a bom termo os objectivos que conduziram à sua constituição (Art. 28 e s. da citada convenção).
Em relação aos funcionários consulares, a convenção, no seu artigo 22°, estabelece o princípio de que estes deverão possuir a nacionalidade do Estado que envia, mas admite no seu número dois, excepcionalmente, que os funcionários detenham a nacionalidade do Estado receptor, mediante consentimento expresso deste Estado.
Tal regime, tendo em conta o disposto no nº 2 e 3 do Art.1º, visou possibilitar o estabelecimento de postos consulares honorários, previstos no capítulo III, dirigidos por consules honorários que sejam detentores da nacionalidade do País receptor ou nele tenham residência permanente. Tendo em conta o carácter sui generis destes postos consulares, as garantias e imunidades dos postos consulares honorários e do seu pessoal foram comprimidas, principalmente no que diz respeito à imunidade pessoal e à jurisdição penal.
Relativamente às atribuições dos postos consulares, designadas na convenção por "funções consulares" (Art. 5º), não existe qualquer disposição que as delimite, tendo em conta a distinção entre postos consulares e postos consulares honorários, pelo que se presume que as funções consulares previstas no Art. 5º da convenção caberão igualmente no âmbito das atribuições dos consulados honorários, salvo disposição em contrário dos regulamentos ou legislação do Estado que envia.
Desse modo se pode estabelecer que uma das funções dos consulados ou consulados honorários será a de "emitir passaportes e outros documentos de viagem aos nacionais do Estado que envia..."Art. 5º, alínea d).
Estabelecida assim a competência, à face do Direito Internacional convencional, da emissão de documentos de viagem, nomeadamente passaportes, resta saber, independentemente das atribuições que foram conferidas aos consulados pelo Estado que envia, se existem limitações decorrentes da convenção à emissão pelo consulado de documentos de viagem.
Em nosso entender, de acordo com o espírito e com a letra da alínea d) do Art. 5º da convenção de Viena sobre relações Consulares, os consulados só poderão emitir documentos de viagem a "interessados que provem previamente possuir a nacionalidade do Estado" que o consulado representa.
Assim, importa agora determinar, em face do direito internacional, quais as relações entre documentos de viagem e nacionalidade e em que termos é usualmente reconhecida a nacionalidade pela comunidade dos Estados.
NACIONALIDADE E DOCUMENTOS DE VIAGEM
Em primeiro lugar, urge responder à questão da relação entre nacionalidade e direito internacional. Para a doutrina, "nationality is, therefore, a concept not only of Municipal Law but also of Internacional Law. As a concept of Municipal Law it is defined by municipal law: as a concept of internacional law it is defined by international law"1. Entende-se, assim, que a nacionalidade é, prima facie, um conceito e um estatuto pessoal a definir pela lei interna de cada Estado, mas que se encontra limitada, no seu alcance e conteúdo, por regras de direito internacional. Para Weiss2, "from general rules of international law governing the relations between States, a few rules can be derived which limit the freedom of States to confer or withdraw their nationality. While questions of nationality are normally determined by municipal law, this legislative competence of States does not amount to omnipotence".
No mesmo sentido, e contribuindo para precisar quais as regras de direito internacional que limitariam a competência dos Estados para legislar sobre atribuição de nacionalidade, pronunciou-se a delegação Alemã à Conferência para a Codificação do Direito Internacional de 1929: "The general principle that all question relating to the aquisition or loss of a specific nationality shall be governed by the laws of the State whose nationality is claimed or contested should be admitted. The application of this principle, however, should not go beyond the limits at which the legislation of one State encroaches on the sovereignty of another. For example, a State has no power, by means of a law or administrative act, to confer its nationality [...] when the persons concerned are not attached to it by any particular bond, as, for instance, origin, domicile or birth, the States concerned will not be bound to recognize such naturalization"3.
Assim, quer o poder legislativo dos Estados quer a sua prática administrativa encontram-se limitados, do ponto de vista do direito internacional, quanto à concessão da nacionalidade, nomeadamente por via da naturalização, pela existência de um elo ou ligação efectiva dos cidadãos ao Estado concedente.
Como é sabido, tal ligação distingue-se em dois momentos não coincidentes entre si: aquisição originária pelo nascimento no território do Estado concedente ou por ligação por parentesco de linha sucessória com um prévio nacional do Estado concedente; aquisição derivada por efeito da vontade, designadamente por naturalização, pressupondo a residência no território do Estado concedente com animus manendi.
Do ponto de vista do Direito Internacional, esta ligação também é traduzida, quanto à aquisição originária, por dois princípios estatuidos como regra geral e comummente aceites pela generalidade dos Estados: jus soli e jus sanguinis.
Para Brownlie4, estes princípios definem-se como "the two main principles on which nationality is based are descendent from a national (jus sanguinis) and the fact of birth within state territory (jus soli)"

Precisando ainda esta noção de que a nacionalidade pressupõe uma ligação permanente e consistente entre o Estado concedente e os indivíduos, pronunciou-se o Tribunal Internacional de Justiça no "caso Nottebhom"5: "[...] a nacionalidade tem que corresponder à situação de facto para que possa ser invocada contra outro Estado", acrescentando ainda que "[...] o Estado não pode exigir que as regras que adoptou sejam aceites por outro Estado salvo se actuou de acordo com este fim geral de fazer com que o laço jurídico da nacionalidade dependa da ligação genuína do indivíduo com o Estado que assume a defesa dos seus cidadãos através da protecção face a outros Estados". O tribunal, na fundamentação da decisão do mesmo caso, define aquela ligação genuína da seguinte forma: "a nacionalidade é um laço jurídico que tem como fundamento um facto social de ligação, uma conexão de existência genuína, interesses e sentimentos, bem como a existência de direitos e deveres recíprocos"6.
Fixada assim a noção e o alcance da nacionalidade do ponto de vista do Direito Internacional, importa agora, no âmbito das relações actuais entre Estados, precisar o que se considera ser prova bastante da nacionalidade, nomeadamente tendo em conta que a facilidade de deslocação proporcionada aos cidadãos no Mundo moderno exigiu a instituição de documentos que, além da prova da identidade do seu titular, relevassem igualmente na fixação da sua nacionalidade. Com efeito, a existência de autorizações de entrada no território dos Estados (vistos) bem como a existência de relações diplomáticas mais ou menos conflituosas, determinou que a nacionalidade fosse um elemento essencial na análise da identidade dos cidadãos para esse efeito.
Considera-se, por isso, no âmbito das relações entre Estados, que o passaporte desempenha uma tripla função: esclarece sobre a identidade do seu titular, é um documento considerado bastante para cruzamento das fronteiras políticas entre Estados e, prima facie, fixa a nacionalidade do seu titular.
Não cuidaremos aqui de saber das situações particulares dos passaportes para estrangeiros, emitidos pelos Estados a não nacionais quanto este provem não poder obter um documento de viagem do seu País de origem, mas apenas dos passaportes comuns que, na ausência de menção em contrário, atribuem, nas relações entre Estados, a nacionalidade do Estado emitente ao seu titular.
Mas terão os Estados que aceitar a nacionalidade que, aparentemente, o passaporte atribui ao seu titular? Ou poderão indagar se a situação de nacionalidade formal corresponde à situação de facto, com os critérios supra referidos e que vimos corresponder à noção de nacionalidade do ponto de vista do Direito Internacional?
É escassa, se não inexistente, a doutrina e jurisprudência sobre esta particular matéria, sendo no entanto possível encontrar alguma doutrina que se pronunciou, neste âmbito, sobre os certificados de nacionalidade e que paralelamente se pode analisar, quanto à questão da nacionalidade, na função semelhante desempenhada pelos passaportes.
Assim, na "Flegenheimer Claim7", a comissão pronunciou-se do seguinte modo: "From the standpoint of merit, even certificates of nationality, the content of which is proof under the municipal law of the issuing State, can be examined and, if the case warrants, rejected by international bodies randering judgement under the Law of Nations, when these certificates are the result of fraud, or have been issued by favour in order to assure a person a diplomatic protection to which he would not be otherwise entitled, or where they are impaired by serious errors, or where they are inconsistent with the provisions of international treaties governing questions of nationality in matters of relationship with the alleged national State, or, finally, when they are contrary to the general principles of the law of Nations on nationality [...]".
Considerou assim a comissão que os documentos emitidos pelas autoridades competentes dos Estados e que confiram a nacionalidade não devem unicamente ser analisados do ponto de vista da sua regularidade legal e formal com a lei do Estado emitente, mas igualmente no âmbito da sua conformidade com as regras do Direito Internacional que fixam o conceito de nacionalidade reconhecido pela comunidade dos Estados.
Um documento que ateste a nacionalidade do seu titular e que não tenha em conta estas duas facetas do conceito, a do estado emitente e a da comunidade internacional, pode ser considerado "ilegítimo e não reconhecido pelos outros Estados".
CONCLUSÕES
-A convenção de Viena sobre relações consulares de 24 de Abril de 1963 permite a constituição de consulados honorários cujo cônsul pode, em certas circunstâncias, não possuir a nacionalidade do Estado que envia.
-Considera-se abrangida nas "Funções Consulares" dos consulados Honorários a emissão de passaportes e outros documentos de viagem, salvo disposição em contrário da prática administrativa interna dos Estados que o consulado representa.
-Do ponto de vista da Convenção de Viena, só serão legítimos os passaportes emitidos desde que os requerentes sejam prévios nacionais do Estado que o Consulado representa.
-A nacionalidade é um conceito que não é unicamente definido pela lei ou prática administrativa interna dos Estados concedentes, constituindo igualmente um conceito de Direito Internacional.
-Para o Direito Internacional, a nacionalidade pressupõe um vínculo ou ligação permanente ao Estado concedente, que se traduz nos princípios do ius soli ou ius sanguinis ou na residência com animus manendi.
-Os documentos de viagem, ou quaisquer outros documentos que visem provar a nacionalidade do seu titular, mesmo sendo emitidos de acordo com a lei interna do Estado concedente, poderão ser havidos como ilegítimos, não relevando os fins a que se propõem, se não estiverem de acordo com o conceito de nacionalidade aceite pelo Direito Internacional;
-Os passaportes nacionais emitidos pelos Estados sem ter em conta o conceito de nacionalidade aceite pela comunidade dos Estados poderão não ser reconhecidos, não relevando para efeitos de protecção diplomática ou enquanto documento de viagem, designadamente para as facilidades concedidas aos titulares cuja razão de ser ou circunstância determinante resida na nacionalidade (isenção de vistos, período de permanência, etc.).
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* Técnico Superior da Directoria da Polícia Judiciária de Macau
1 P. WEIS, Nationality and Statelessness in international Law, pág. 239.
2 Op. Cit., pág. 241.
3 League of nations, Conference for the Codification of International Law, Bases of discussion, I, Nationality (1929).
4 IAW BROWNLIE, Principles of Public International Law, 4ª Edição, pág. 387.
5 Caso Nothebohm (Liechenstein V. Guatemala), T.I.J., 1955, I.C.J. nº 4, in Colectânea de Jurisprudência de Direito Internacional, por Paula Escarameia.
6 Op. Cit., pág. 151.
7 United States - Italian Conciliation Commission International Law Reports, nº 25, pág. 91.