IMPORTÂNCIA MÉDICO-LEGAL DA VERIFICAÇÃO DO ÓBITO

* J. A. Baptista Pereira


INTRODUÇÃO


  Desde 9 de Agosto de 1814 que em Portugal é necessária a certificação do óbito, expressa e formalmente documentada, para se efectuar o enterramento dos corpos. O medo de poder ser inumado em estado de morte aparente criou autêntica fobia na sociedade do século passado, o que levou a que se legislasse sobre a obrigatoriedade de verificação do óbito e de aguardar pelo menos 24 horas após a morte, antes de proceder ao enterramento ou autópsia. Estas medidas de natureza preventiva, apesar do progresso da ciência médica e dos métodos modernos de diagnóstico, continuam actualizadas e tão necessárias como antes. A moderna conservação dos corpos pelo frio é uma medida importante para a saúde pública, mas os seus efeitos não serão muito diferentes dos da inumação precoce, se não tiverem sido acauteladas aquelas medidas peventivas.
  Em Macau, as mesmas medidas legais foram aplicadas mercê da continuidade ou extensão normativa que vigorava para as antigas colónias portuguesas. Actualmente, a verificação do óbito é explicitada através de um documento, o Certificado de Óbito, impresso oficial (artº. 1º da Portaria nº 21/85/M de 9 de Fevereiro) cujo preenchimento deve ser efectuado nos termos indicados no próprio documento. A verificação deve ser feita pelo médico que assistiu à morte, pelo médico que consultou regularmente a vítima na doença que terá dado origem à morte ou pelo médico que a observou, mesmo que ocasionalmente, nos sete dias que precederam a morte.
  A verificação do óbito é um acto médico de importância social inegável. O diagnóstico da morte implica a colheita semiológica dos elementos que comprovam a ausência irreversível da vida ou a presença da morte. Pressupõe um exame externo e a pesquisa por métodos clínicos, atenta e correctamente efectuada, da ausência de batimentos cardíacos e de circulação sanguínea (auscultação com estetofonendoscópio durante cinco minutos em cada foco, invisibilidade dos vasos da retina com auxílio de um oftalmoscópio), bem como da ausência de reflexos dos nervos cranianos.
  Em caso de dúvida, poderá recorrer-se ao traçado electrocardiográfico, que deverá ser isoeléctrico. Não colocamos neste âmbito o diagnóstico da morte cerebral, apenas necessário em circunstâncias muito específicas.
  O médico que procede à certificação do óbito assume a responsabilidade legal de contribuir para o diagnóstico diferencial entre morte natural, não natural ou de causa desconhecida. É ele, na forma como preenche o certificado de óbito, quem vai determinar se o cadáver pode ser entregue à família, para serem efectuadas as exéquias fúnebres, ou se, pelo contrário, há necessidade de intervenção médico-legal ou judicial para avaliar da conveniência de realização de autópsia médico-legal1. Detém uma responsabilidade civil acrescentada, na medida em que identifica um indivíduo que deve ser anulado ou riscado de todos os registos do meio social em que se encontrava até aí integrado, determinando o momento em que se anula a sua personalidade jurídica.

DA COMPETÊNCIA


  Averificação do óbito é um acto médico e, como é óbvio, compete exclusivamente aos médicos a sua execução2. Na prática corrente no Território de Macau, muitas vezes a constatação da morte através dos seus sinais próprios é unicamente verificada pela enfermeira que acompanha a ambulância da instituição chamada a prestar os últimos socorros à vítima. O enfermeiro ou outro profissional de saúde têm capacidade para presumir que um corpo se encontra morto, mas não têm competência para verificar a morte. A ausência de batimentos cardíacos, de percepção do pulso ou dos movimentos respiratórios é apenas sinal de presunção da morte, se observada isoladamente e sem o apoio de outra semiologia clínica.
  Nestas circunstâncias, não se procede ao preenchimento do certificado de óbito porque não foi realmente verificado o óbito. Para que tal aconteça, devem ser seguidas as orientações legais (Decreto-Lei nº 47/85/M), e se assim for, existem regras que prevêem que o corpo morto ou moribundo seja sempre observado por um médico antes de recolher à casa mortuária.
  Nem sempre é esta a prática entre nós, o que urge corrigir. Só em circunstâncias muito específicas, que enumeramos mais adiante, em que os sinais próprios da morte são evidentes, o corpo pode ser colocado na casa mortuária sem ter sido verificado o óbito por um médico. Por erro de diagnóstico, existe sempre a possibilidade de ser colocado na câmara frigorífica um corpo apenas em morte aparente.
  A importância e responsabilidade médico-legal deste acto e a sua especificidade médica são bem reconhecidas nas condicionantes impostas pelo legislador, ao exigir que fiquem expressos no certificado de óbito o diagnóstico do fenómeno da morte, os meios utilizados para diagnóstico da causa provável da morte, a diferenciação entre causa de morte natural ou violenta e a identificação de perigo para a saúde pública.


DO PROCESSO


  Nas mortes ocorridas dentro dos domicílios, se houver a certificação do óbito em documento próprio, por um médico devidamente licenciado no território e actuando segundo as leges artis, desde que seja confirmada uma causa de morte natural e sem perigo para a saúde pública, a Conservatória do Registo Civil efectuará o respectivo registo. Com o seu comprovativo, é efectuada a comunicação à autoridade policial legalmente habilitada (Polícia de Segurança Pública - P.S.P.) e o funeral ou a trasladação poderão realizar-se3.
  Na mesma situação, se não existir a verificação médica do óbito e se tiver sido solicitada a presença de outra entidade não médica (enfermeiro, bombeiros, polícia), esta deverá identificar rapidamente:
  -se há sinais absolutamente ine-quívocos de que o corpo se encontra clinicamente morto (por ex. livores, rigidez, decapitação, putrefacção);
  -se o corpo apenas parece morto (por ex. imobilidade, arrefecimento, aparente paragem da respiração, ausência de pulso ou mesmo de batimentos cardíacos);
  -se há indícios de morte violenta ou suspeita.
  Se o corpo parece morto e sem indícios que façam suspeitar de morte não natural, deve ser removido para o serviço de urgência do Centro Hospitalar Conde S. Januário (CHCSJ), a cujos médicos de serviço compete verificar o óbito e emitir o respectivo certificado4. Mesmo que o corpo apresente os tais "sinais inequívocos de que se encontra clinicamente morto", embora sem indícios de morte suspeita, dado que é necessário certificar medicamente o óbito, deve da mesma forma ser removido para aquele serviço de urgência.
  Note-se que, apesar de existir no território de Macau outra entidade hospitalar com serviço de urgência aberto durante vinte e quatro horas, o legislador condicionou o transporte de corpos mortos ou moribundos, nestas circunstâncias, para o hospital de gestão pública e governamental (CHCSJ).
  Nos casos ocorridos fora dos domicílios ou dentro destes, "desde que exista suspeita de crime ou desconhecimento da causa de morte", o corpo só pode ser removido depois da presença da Polícia Judiciária (PJ)5. Esta autoridade policial, ao tomar conhecimento do ocorrido e depois das primeiras investigações no local, decidirá se será necessária a presença do médico-legista. Quando se levantem dúvidas quanto ao diagnóstico diferencial entre suicídio, acidente ou homicídio, "não é permitida a remoção do corpo sem a comparência dos peritos médicos"6. Estes, para além de verificarem o óbito, recolherão elementos que permitam ajudar os investigadores nas suas hipóteses e deduções.
  Se não se colocam aquelas dúvidas e o corpo apresenta sinais inequívocos de que se verificou a morte, esta autoridade policial (PJ) pode mandar removê-lo para a morgue, onde será verificado o óbito posteriormente, nos termos da Portaria 21/85/M.
  No entanto, o direito à vida de qualquer ser humano, mesmo que criminoso ou marginal, exige que as autoridades policiais (Polícia Marítima e Fiscal ou Polícia de Segurança Pública) tenham o bom senso de fazer evacuar, rápida e cuidadosamente, para o Serviço de Urgência do CHCSJ qualquer corpo inconsciente ou inanimado, em qualquer circunstância, desde que se ponha em dúvida se já se encontra morto ou se ainda poderá beneficiar de cuidados médicos.
  Este facto não invalida que a Polícia Judiciária seja convocada simultaneamente e que actue de acordo com as regras a partir daquele momento. Nestas circunstâncias, que não são raras, é importante a presença do enfermeiro nas ambulâncias, devidamente preparadas e apetrechadas para prestar os primeiros socorros às vítimas que deles precisam.

DA LEGISLAÇÃO


  Oprimeiro documento legal de Macau que menciona estes procedimentos é o Decreto-Lei nº 7/85/M, de 9 de Fevereiro, que, no seu artº. 14º, fala da "remoção de restos mortais pela autoridade policial". Este documento é importante porque estabelece as condições médico-legais pertinentes para a trasladação, remoção, enterramento, cremação e incineração de restos mortais.
  Dada a diversidade de autoridades policiais e a falta de definição legal de alguns termos daquela legislação7, cedo devem ter surgido as divergências e dificuldades na sua aplicação, visto que quatro meses depois era publicado novo documento para esclarecer dúvidas e definir conceitos.
  No Boletim Oficial nº 24, de 15/6/85, é publicado o Decreto-Lei nº 47/85/M, definindo expressamente que a autoridade policial referida no anterior documento legal é a Polícia Judiciária, e que só após a sua presença se pode efectuar a remoção dos restos mortais (art.3º).
  Define ainda restos mortais: "exclusivamente aqueles que pela forma em que foram encontrados, apresentam sinais inequívocos de que estão clinicamente mortos" (art.2º). Todos os restantes, mesmo que supostamente mortos, mas não apresentando sinais absolutamente inequívocos de tal estado, devem ser conduzidos para o Serviço de Urgência do CHCSJ, "a fim de ser verificado se se encontram clinicamente mortos" (art. 4º); se assim for, deve ser comunicado à PJ, e só ela poderá ordenar a remoção para a morgue do mesmo CHCSJ (art.5º), conforme já referimos.
  Embora não esteja expresso nesta Lei, subentende-se que, se a morte ocorreu dentro do Hospital Público, nas circunstâncias definidas na alínea b) do art. 14º do Decreto-Lei nº 7/85/M, o caso deve, da mesma forma, ser comunicado à Polícia Judiciária e só depois será por esta ordenada a remoção para a morgue do CHCSJ. O art. 7º do Decreto-Lei 9/94/M (falecimento nos hospitais públicos) vem alterar esta medida de precaução, e quanto a nós incorrectamente, na medida em que pode prejudicar irremediavelmente o êxito da investigação policial. Deveria ter aplicação apenas quando se tratasse de uma morte natural, embora desconhecida. Após a ocorrência de uma morte violenta, deveria ser obrigatória a presença da PJ antes de se tocar no cadáver, em qualquer circunstância. Não entendemos o regime de excepção que a Lei concede ao hospital público.
  O processo, Inquérito Sumário ou Instrução Preparatória, com as diligências efectuadas até ao momento (identificação ou tentativa, averiguações e exame do local), é apresentado à autoridade judiciária competente, Ministério Público ou Juiz de Instrução Criminal, que ordenará que se faça a autópsia ou a dispensará, nos termos da Lei (Código de Processo Penal - art.os 175º a 191º - e sua alteração - Decreto-Lei nº 605/75 de 3/11, publicado no Boletim Oficial de Macau nº 47, de 19/11/77).
  O Decreto-Lei nº 9/94/M de 31 de Janeiro, que regulamenta a prática de Medicina Legal em Macau, no art. 9º, Preceitua que "a ordem ou a dispensa da autópsia é da competência da autoridade judiciária que investigue a causa da morte".
  Este documento, mais uma vez por falta de esclarecimento, gera alguma polémica porque parece querer alterar a forma tradicional, não sendo essa a intenção do legislador. Para alguns, aquelas funções passam a competir aos magistrados do Ministério Público que presidem à instrução. Para outros, até poderiam ser exercidas pelo Director da Polícia Judiciária ou os seus Inspectores, como autoridade judiciária que investiga a causa da morte, como já foi prática8. Lembramos que em Portugal, para além dos magistrados, os directores dos Institutos de Medicina Legal e os peritos médico-legais que exerçam junto dos hospitais podem dispensar a efectuação da autópsia9 sempre que se confirme que houve morte natural e de causa identificável, passando o respectivo Certificado de Óbito.

DOS CONCEITOS E SUA INTERPRETAÇÃo


  Oconceito de verificação do óbito é mais extenso do que do ponto de vista semântico se poderia deduzir. Para além de verificar o óbito, por meio da colheita correcta e exaustiva dos sinais clínicos de morte, o médico (clínico e não necessariamente médico-legista) deverá proceder ao exame do hábito externo e atender a todas as circunstâncias que poderiam ter concorrido para a situação em que se encontra o cadáver. Não só a causa de morte mas também a sua posição, localização, estado das roupas e objectos que contenham, manchas e objectos que se encontrem próximos, a atitude dos familiares e vizinhos, enfim, tudo o que possa ajudar a compreender a situação. As múltiplas informações assim recolhidas permitirão que o médico alerte as autoridades, se houver suspeita de crime ou de morte violenta, mesmo que não criminosa. Quando o certificado de óbito é levado à Conservatória do Registo Civil para obter a licença de enterramento, aqueles serviços têm a obrigação legal de alertar a Polícia Judiciária, que desencadeará todo o processo nos termos que já referimos.
  Nos países de influência anglo-saxónica, que contemplam no seu sistema forense a figura do Coroner, existem listas de causas de morte, cuja comunicação àquela entidade é obrigatória. Essa comunicação pode ser directa ou através da autoridade policial. No nosso sistema não existe essa figura intermédia nem as ditas listas. Compete ao médico que verifica o óbito, como dissemos, procurar efectuar um exame externo exaustivo, recolher toda a informação sobre as circunstâncias que levaram à morte e elucidar as autoridades, inclusive a Conservatória do Registo Civil, se está perante uma morte natural ou se existem alguns sinais ou indícios que o ponham em dúvida. A notificação é feita no próprio certificado, através da identificação da causa de morte e sua codificação, para além de poder acrescentar em observações todas as dúvidas que se lhe levantem.
  Alguns funcionários do Registo Civil, num excesso de zelo, colocam dificuldades desnecessárias e recusam os certificados, devidamente preenchidos e autenticados, apenas porque não entendem os termos clínicos usados. É frequente, por exemplo, a recusa de registo, com consequente comunicação à Polícia Judiciária, quando é mencionado acidente vascular cerebral, hemorragia cerebral ou hemorragia intracraniana, mesmo que não exista descrita uma razão traumática. A confusão de acidente natural e orgânico com algo de externo é óbvia. Recomendamos que os termos que não sejam claros para o vulgo ou que possam confundir-se com razões não naturais não sejam usados pelos médicos, para evitar transtornos burocráticos desnecessários. As causas de morte são codificadas segundo a nona revisão da Classificação Internacional de Doenças, Traumatismos e Causas de Morte da Organização Médico-Legal conhecida por CID - 9 e publicada no Decreto-Lei nº 6/85/M, de 9 de Fevereiro.

DA CAUSADO ÓBITO


  Na lista de causas de morte a comunicar obrigatoriamente ao Coroner, na cidade estado de Singapura, encontramos senilidade, demência senil e idade avançada. Estas não são causas de morte de natureza violenta ou totalmente desconhecida, pelo que não são indicadoras da necessidade de autópsia médico-legal. Sendo situações clínicas mal definidas, indicam a incapacidade do médico verificador do óbito para chegar a um diagnóstico mais correcto. Estamos convencidos de que, após uma pequena investigação semiológica e clínica verdadeiramente interessada, se poderá sempre encontrar uma causa mais precisa e com maior probabilidade de se aproximar da verdade, aliás como temos comprovado com a prática que temos vindo a experimentar. Felizmente, entre nós estas causas de morte são cada vez menos assinaladas nos certificados de óbito.
  É verdade que, por vezes, nas idades avançadas, é difícil determinar clinicamente a causa da morte entre tantas patologias que o poderiam ser. Outras vezes, não existem indícios nem motivos para duvidarmos de que se trata de uma morte natural, sem termos no entanto exames complementares ou elementos clínicos de certeza que o comprovem. Esta dúvida existencial é a angústia de muitos médicos que se recusam a passar o certificado de óbito por não terem a certeza absoluta de qual foi a causa de morte, apesar de terem assistido a esta ou de terem tratado o indíviduo agora falecido durante um período mais ou menos longo e de não terem qualquer suspeita quanto a morte violenta.
  Mas quem poderá ter essa certeza absoluta? Em que circunstâncias?
  Quantas vezes, no exame de autópsia, mesmo quando anátomo-clínico e rodeado de todos os exames complementares, apenas nos ficamos pela descrição das consequências ou efeitos de uma provável causa de morte? E para a justiça, isto é, médico-legalmente, o que interessa verdadeiramente determinar? Se a morte teve uma causa natural, súbita e inesperada ou evolutiva e aguardada ou se, pelo contrário, algo externo causou ou influenciou o processo que levou à morte. Quando não existem sinais ou indícios de que a causa de morte tenha sido violenta ou não natural e, pelo contrário, há uma orientação clínica de probabilidade para que ela tenha sido natural, a procura da determinação exacta através da autópsia apenas tem um interesse académico ou estatístico. Se não há qualquer indicação clínica ou esta é muito ténue, pouco precisa ou de idoneidade duvidosa, não hesitamos em referir que se impõe efectuar a autópsia, aliás como é de lei.
  Em resumo, o clínico não tem que ter receio de registar uma causa de morte baseado somente na semiologia clínica pregressa e na avaliação da informação prestada por quem assistiu à morte. Ter sempre que observar o corpo, mesmo que só depois de morto, para confirmar o seu estado e efectuar o exame externo. O seu diagnóstico final, aquele que vai registar no Certificado de Óbito, é sempre um diagnóstico de presunção, tendo em conta todos os dados que conseguiu recolher. Se assim procede, não tem que ter receio, mesmo que a posteriori se venha a imputar e confirmar, para o mesmo caso, uma outra causa de morte diferente da que mencionou. O clínico procedeu correctamente e dentro do que a arte lhe permitiu.
  Toda a estatística tem uma margem de erro aceitável e previsível. Porém, não é de aceitar que um médico se recuse a preencher um certificado de óbito, após ter verificado o mesmo, apenas porque se lhe colocam dúvidas metafísicas ou académicas. O certificado certifica o óbito, e não necessariamente a sua causa última. Identifica um cadáver ou um corpo, confirma a morte através dos sinais semiológicos adequados, menciona o dia e a hora em que se verificou o óbito e regista aquela que pareceu ao clínico ser a mais provável causa de morte, tendo em conta o exame do cadáver, a colheita dos últimos sinais e sintomas e a história pregressa pessoal e familiar. Por vezes, é útil consultar os registos clínicos que possam existir ou auscultar a opinião de outros clínicos que possam ter tido qualquer contacto ou intervenção no tratamento do falecido.
  Se não se conseguirem reunir elementos credíveis, idóneos e adequados para se poder deduzir, mesmo que só em probabilidade, qual a causa de morte, ou se nesta pesquisa se levantam contradições, dúvidas ou suspeitas, então o médico verificador do óbito tem o dever de expressar as suas dúvidas no Certificado de Óbito, em lugar próprio (observações) ou através de relatório que juntará ao mesmo, preenchendo o lugar reservado à causa de morte com a expressão causa de morte ignorada ou indeterminada.
  Na nossa opinião, não deverá deixar de passar o Certificado de Óbito, que conterá sempre outras informações importantes para a futura investigação, que confirma o seu acto médico (verificação do óbito) e que, para além disso, corroborará ou servirá de declaração para a Conservatória do Registo Civil. Esta, ao receber um Certificado nestas condições, escusar-se-á a efectuar o registo e irá comunicar à autoridade judicial competente o ocorrido, nos termos do art. 158º do Código do Registo Civil.

DA DEONTOLOGIA


  Não é admissível que o médico se recuse a emitir o certificado de óbito de um seu paciente apenas porque não assistiu ao seu último momento ou que registe morte indeterminada apenas para obrigar a que se faça uma autópsia médico-legal. Este é muitas vezes o subterfúgio utilizado ao nível do hospital público para obrigar a uma autópsia que poderá ter algum interesse académico, mas raramente médico-legal.
  O médico sabe que a autópsia anátomo-clínica carece da autorização da família para se efectuar, mas a autópsia médico-legal dispensa a anuência daquela. À família é comunicada que vai ser efectuada a autópsia, ordenada por um magistrado, e que a ela não poderá opor-se. A família, ou quem de direito relativamente ao autopsiado, pode exigir a presença do juiz e opor-se a que o exame se efectue na sua ausência (nova redacção do art. 2º do Decreto-Lei nº 605/75 de 3 de Novembro, publicado no Diário da República nº 191, de 21/8/81), mas para além dessa concessão legal, o exame efectuar-se-á, se assim for da vontade do tribunal.
  A verificação do óbito dum seu paciente ou de outro qualquer em que apenas diagnosticou a morte (verificou o óbito) é um dever sanitário do médico, expresso no art. 93º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos. A sua recusa, ou a recusa em colaborar com as entidades sanitárias, é também uma falta deontológica. É importante e obrigatória a comunicação das doenças infecto-contagiosas ou que possam constituir perigo para a saúde pública; o impresso do certificado contém também um espaço onde tal pode ser mencionado.
  A verificação do óbito é um acto médico gratuito. Se para realizar este acto o médico tem necessidade de se deslocar, tem direito às despesas respectivas, mas não tem o direito de cobrar honorários.

DA DECLARAÇÃO DO ÓBITO


  Adeclaração do óbito é um acto administrativo e verbal da obrigação da família, vizinhos ou conhecidos do falecido, da autoridade administrativa, religiosa ou policial que dele tenha tido conhecimento. Tem que ser efectuada até dois dias após o seu conhecimento, na Conservatória do Registo Civil competente.
  Embora no artigo 156º do Código do Registo Civil em vigor no território11 esteja prevista a "impossibilidade absoluta" de ser passado o certificado de óbito, podendo ser substituído provisoriamente por um auto lavrado pela autoridade administrativa, não consideramos que tal seja alguma vez necessário. No próprio impresso oficial do certificado de óbito há um espaço reservado para registar o auto lavrado pela autoridade policial. Pela exposição anterior, já demonstrámos como é sempre possível que haja a verificação do óbito e consequentemente a sua certificação.
  Talvez noutros tempos e noutras latitudes houvesse necessidade de tal prevenção. Entre nós, "se não vai o profeta à montanha, vem a montanha ao profeta", ou seja, se não é verificado o óbito no domicílio, como seria desejável, então há sempre necessidade de transportar o corpo presumivelmente morto para o Serviço de Urgência do Centro Hospitalar Conde de S. Januário, para que seja verificado o óbito. Aliás, o transporte do cadáver teria sempre de se fazer porque, segundo os hábitos culturais da população de Macau, as exéquias fúnebres fazem-se a partir da Casa Mortuária deste Centro Hospitalar ou do Hospital de Kiang Wu. Em Macau não há tradição de velar o corpo em casa, como ainda hoje é costume em muitas regiões do globo. Também não é considerado de bom agouro ter em casa parentes moribundos, esperando o seu último momento junto dos seus familiares. Pelo contrário, é a pressa em retirar o corpo, supostamente morto, de dentro do domicílio que impossibilita que seja o médico assistente ou de família a passar o certificado de óbito. Quando este tem conhecimento do facto, já o corpo se encontra na casa mortuária, sem verificação do óbito.


DA INTERVENÇÃO mÉDICO-LEGAL


  Outra situação prevista naquele código e que não se verifica é a intervenção da autoridade sanitária para verificar o óbito. Não existe certificado de óbito quando este não é verificado. Se não for verificado o óbito, apesar de declarado pela família ou por outra entidade, haverá uma intervenção da autoridade policial, que invariavelmente recorre ao Serviço de Medicina Legal do CHCSJ para que este investigue, verifique e certifique o óbito. A autoridade sanitária apenas intervém nas situações em que é necessário o seu parecer para trasladação, cremação e incineração. Na prática, porque este casos acabam sempre por se transformar em casos de polícia, são os serviços médico-legais do território que solucionam e legalizam a morte, mesmo quando não suspeita nem violenta.
  Durante o ano de 1994, foram verificados no Serviço de Medicina Legal do C.H.C.S.J., por um dos seus dois peritos médico-legistas, os óbitos de 327 cidadãos, dos quais 152 tiveram que efectuar autópsia médico-legal por suspeita de morte violenta ou por morte totalmente desconhecida.
  Nos exames de autópsia efectuados, 34 tiveram um diagnóstico de causa de morte natural (30 por morte súbita e 4 por doença crónica terminal). Nos restantes 118, a morte violenta foi determinada por: homicídio, em 17 (14.4%), suicídio, em 39 (33.1%), acidente ou suicídio, mas não totalmente definido, 5 (4.2%), acidente de trabalho, 12 (10.2%), acidente de viação, 22 (18.6 %),acidente individual ou doméstico, 19 (16.1%).Ficou por esclarecer a etiologia da morte de 4 corpos autopsiados, mas em que o estado de putrefacção ou deterioração não possibilitou efectuar um diagnóstico seguro, nem a investigação policial o permitiu esclarecer.
  Em comparação com os anos anteriores, houve uma significativa diminuição das autópsias por causas de morte não violenta, nomeadamente doença súbita e doença crónica. Este dado atesta ser maior o número de casos em que é possível encontrar uma causa de morte se houver uma investigação mínima, clínica e policial, anterior à decisão de efectuar autópsia, como tem sido prática neste Serviço de Medicina Legal. O número de acidentes de viação também aumentou, atingindo o valor mais elevado dos últimos dez anos (20 em 1991), em que a média foi de 14 acidentes por ano.

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  * Médico Assistente de Clínica Geral e Perito Médico-Legista dos Serviços de Saúde de Macau.
  Regente da cadeira de Medicina Legal na Faculdade de Direito da Universidade de Macau
  1 Pinto da Costa, J.,—“Verificação da Morte”- Medicina Legal/J.N., 15-21,1990-91, I.M.L., Porto.
  2 Art.5 do D.L. 9/94/M — “A verificação do óbito cabe aos médicos, nos termos da lei”.
  3 Art.5 do D.L. 7/85/M de 9 de Fevereiro.
  4 N.4 do art. 14 do D.L. 47/85/M de 15 de Junho.
  5 N.3 do art. 14 do D.L. 47/85/M de 15 de Junho.
  6 N.1 do art. 8 do D.L. 9/94/M de 31 de Janeiro.
  7 Art. 14 do D.L. 7/85/M de 9 de Fevereiro.
  8 Bento Garcia Domingues, “A notícia do crime”, in Investigação Criminal, pág.154, Lisboa, 1963.
  9 Na reestruturação da Organização Médico-Legal portuguesa (Decreto-Lei nº 387-C/87 de 29 de Dezembro), em vigor desde 1/1/88, esta matéria ficou definida nos art.s 29º a 33º, merecendo nesta altura a nossa referência resumida:
  Art. 29º[...] Haverá lugar a autópsia Médico-legal nos casos de morte violenta, de causa ignorada ou sempre que haja suspeita de crime, acidente de trabalho por conta de outrem ou de viação.
  Art.30º[...] A verificação do óbito é da competência dos médicos.
  Art.31º [...] Nos casos de morte mencionados no art.º 29º, quando a morte se dá em estabelecimento hospitalar público, a administração deste promoverá a remoção do cadáver para os Serviços Médico-Legais, acompanhada da respectiva informação clínica com todos os dados relevantes.
  Art.32º[...] Nos mesmos casos de morte, se o falecimento se der fora das instalações hospitalares públicas, o cadáver não poderá ser removido sem a comparência dos peritos médico-legais, sem prejuízo da actuação da autoridade judiciária. Compete às autoridades que tomem conta das diligências a convocação do perito médico-legal e ordenar o transporte do corpo para os Serviços Médico Legais.
  Art.33º[...] A dispensa da autópsia é da competência da autoridade judiciária que investiga a causa de morte. Quando não se verifique qualquer dos casos citados no art. 29º, mas mesmo assim o corpo foi removido para os Serviços de Medicina Legal, o Director daqueles serviços pode dispensar a autópsia. A dispensa pode ser ainda delegada nos peritos dos Institutos que exerçam junto dos hospitais, não se procedendo à remoção do cadáver para o Institulo Médico-Legal (desde que lhe seja passada a certidão de óbito), a não ser por mandato judicial10.
  10 D.L. 387-C/87 de 29 de Dezembro.
  11 D.L. 14/87/M de 16 de Março (Código do Registo Civil).