Problemas de abastecimento de água à cidade e território
José da Conceição Afonso*

A sistematização cronológica das poucas referências encontradas sobre o problema do abastecimento de água à cidade e Território de Macau, essencialmente nos finais do século passado e começos do novo, é apesar de tudo bastante concludente quanto à existência duma situação gravíssima sentida por quase toda a população, quer quanto à escassez de água, quer quanto à sua insalubridade. Os dados que aqui se apresentam, integram um estudo mais vasto.
Sobre a mesma época, relativo ao Urbanismo Higienista de Macau, que o autor deste artigo vem desenvolvendo.
O abastecimento de água à cidade
1862 - Da primeira parte, "Breves noções topographicas", do "Relatório Sobre a Epidemia de Cólera-morbus em Macau no ano de 1862", da autoria do cirurgião-mór da cidade, Dr. Lúcio Augusto da Silva, faz-se a seguinte transcrição:
Algumas fontes de agua potável rebentam da base dos montes, das quais apenas duas, as menos escassas, são mais aproveitadas pelo publico, ficando uma d´ellas a sudoeste, dentro da cidade, e a outra a nordeste a pequena distancia d´esta. Conviria explorar todas as nascentes que estão em abandono, a fim de fornecer á cidade a abundancia de agua de que ella carece, e que nunca é de mais nos grandes centros de população. O actual governador, o sr. conselheiro Amaral, começou por mandar explorar duas d´estas nascentes, uma das quaes pela quantidade de agua que já fornece indica a utilidade destas explorações. Há em todas as casas, e em alguns lugares públicos, poços que abastecem os habitantes de agua para outros usos domesticos; mas dessa também se sente falta nas ocasiões em que as chuvas escasseiam (…)
1882 - No meu relatório do serviço de saúde respectivo ao ano de 1870 escrevi o seguinte: o abastecimento e distribuição das águas necessárias aos diferentes usos domésticos e industriais, principalmente das águas potáveis, um dos meios pelos quais se conhece o grau de salubridade de uma povoação, é objecto que está solicitando em Macau particular atenção. Sente-se muito a falta de água, particularmente no tempo seco. É raríssimo o poço, cuja água seja potável. As fontes, que não são copiosas, devem ser exploradas e tratadas por pessoa competentemente habilitada, para que não resulte um mal em vez do bem que se pretende obter.
Verificou-se em 1882, em grande parte, este importante melhoramento higiénico, devido à determinação do governo da província e à execução pronta e inteligente do actual director das obras públicas. Assim, uma poça lamacenta, que tinha por baixo a dois metros e meio uma veia de água, e de que se tirava em mais de um quarto de hora uma dada porção de um líquido turvo, transformou-se numa fonte que fornece hoje em dois minutos a mesma quantidade de água cristalina e boa. Foi também aproveitada na estrada de Cacilhas outra nascente de água, que havia sido explorada no tempo do governo do conselheiro Coelho do Amaral e depois abandonada, a qual fica do lado oposto àquele em que brota a primeira fonte e a denominada da Flora que também foi melhorada.
Estas três fontes e mais algumas pequenas nascentes próximas, provavelmente de mesma origem, ficam a nordeste e fora da cidade. Há outra fonte no extremo oposto e dentro dela, denominada fonte de Lilau, na rua deste nome, e que brota da base de uma das duas montanhas do extremo livre da península. Esta nascente, que se acha fechada por uma construção disforme e triste, fornece pouquíssima água, parecendo estar desprezada. Pertence ao Leal Senado da Câmara olhar por ela e melhorá-la, não poupando as despesas que para isso sejam necessárias, pois fará deste modo, um dos maiores serviços ao município. É provável que esta corporação não descure agora tão importante objecto. 1
1881 - Edital da Procuratura dos Negócios Sinicos de Macau, de 13 de Abril, assinado pelo procurator interino A. Bastos Jr., in B.P.M.T. do corrente ano, pág. 100, obrigando à fixação por conta do governo, de taboletas com a palavra poço à porta das casas onde estes existam, iluminadas tais taboletas por lanterna durante a noite sempre que ocorram incêndios nas proximidades, sendo franqueado o acesso aos citados poços ao pessoal do serviço de incêndio e, garantido que a essas casas será dada toda a segurança e não sofrerão prejuízo algum.
1883 - O abastecimento de água e em especial de águas potáveis, representa hoje um problema importante em todos os centros populosos, nem sempre fácil de resolver. O consumo médio diário de água oscila nas principais cidades da Europa entre 100 a 700 litros por habitante, e custosas obras têm sido feitas para assegurar essa ração líquida. A água não representa só uma necessidade impreterível como bebida, mas também como elemento indispensável à indústria, às lavagens do homem, das habitações e dos canos de esgoto.
A massa de água consumida diariamente por algumas cidades parece fabulosa, mas se considerarmos os trabalhos colossais que tem sido forçoso empreender para satisfazer esse consumo depressa nos convenceremos da verdade dos algarismos. 2
É Macau pobre em águas potáveis?
1883 - É Macau excepcionalmente pobre em águas, sobretudo em águas potáveis, porque os numerosos poços que abastecem a população vão procurar uma veia quase ao nível do mar formada por águas de infiltração sempre mais ou menos salobras, carregadas de matérias orgânicas, e portanto impróprias para beber, vindo assim a pouca pureza da água juntar mais um elemento de insalubridade a tantas outras que são inevitáveis nas grandes aglomerações de indivíduos." 2
São exploradas na montanha da Flora três fontes de excelente água
1883 - Actualmente são exploradas na montanha que corre sobranceira ao jardim da Flora três fontes de excelente água, e embora o débito não seja importante, abastecem contudo as famílias que têm meios de a fazer transportar para casa.2
Exploração de águas para mais um ou dois chafarizes
1883 - "Se novas pesquisas pudessem fazer juntar a essas nascentes águas de outros pontos não seria difícil estabelecer um ou dois chafarizes na cidade alimentadas por aquelas águas, podendo um deles ser construído no Campo de S. Francisco." 2
A pequena colina de S. Paulo também poderia ser explorada
1883 - A pequena colina de S. Paulo também poderia ser explorada, porque é muito provável que ali corra uma veia de água de certa importância, como o demonstram os dois poços de abundante e excelente água que ali existem.2
As hipóteses de exploração nos montes da Penha e da Barra
1883 - A parte leste da cidade poderia ser fornecida pelas nascentes que porventura se encontrassem nos montes da Penha e da Barra.2
A bica do Lilau e a fonte da Barra
1883 - A bica do Lilau e a fonte da Barra são penhor de que serão bem sucedidas as pesquisas que se empreendam naqueles montes. Um trabalho porém poderá ser imediatamente posto em prática que é a limpeza do depósito e aprofundamento da mina que fornece a chamada bica do Lilau, cuja água foi em tempo muito razoável, mas que hoje pela ruptura dos canos ou por outro qualquer motivo vem carregada de detritos orgânicos que a tornam imprópria para usos alimentícios.2
O conjunto de fontes em Macau é insuficiente
1883 - Por maior que seja o número de novas fontes abertas nos locais apontados parece à comissão, que nunca poderão fornecer abundantemente uma cidade relativamente populosa como Macau. Supondo que o número de litros de água que deve ser distribuído por habitante se não eleve a mais de cem, ainda assim seriam necessários 6 000 m3 por dia para satisfazer este consumo, quantidade esta que, pelos geral acanhados débitos das nascentes, nunca poderão preencher.2
A problemática hipótese das águas abundantes da ilha da Lapa
1883 - Um outro meio haveria de resolver o problema. Era fazer chegar a Macau por meio de um encanamento as águas abundantíssimas da vizinha ilha da Lapa; mas a comissão não se atreve a propor esse alvitre reconhecendo os inconvenientes que dimanariam de estar dependente abastecimento de água da boa ou má vontade de uma potência estrangeira.2
Canalização das fontes da Inveja e da Flora
1885 - Outros benefícios publicos do mais subido quilate se fizeram n´estes ultimos tempos por iniciativa do governo da provincia, e realisados pelo engenheiro o sr. Major Brito. Duas fontes novas se fizeram, descobrindo-se os veios d´água, na falda da montanha proxima e a Este da Quinta da Flora. As fontes, singellas, mas elegantes, denominadas - Fonte da Inveja e Fonte da Flora, têm uma só bica, mas deitam regular porção de água. Esta obra veiu melhorar muito e satisfazer em parte uma necessidade imperiosa, pois que havia reconhecida escassez d´água potavel.
Para uma população tão densa, para uma tão grande area habitada, este beneficio não satisfez cabalmente as conveniencias publicas. Em primeiro logar, porque a quantidade não é ainda a sufficiente, e em segundo porque as fontes ficam fora da cidade. Reconhecido isto, projectou o Ex.mo Sr. Governador canalizar a agua das novas fontes para dentro da cidade, levantando uma fonte na rua do Campo, mas por varios motivos não poude até agora realizar a sua tão grande obra.3 (pág.163)
Canalização do Hospital de Sam Raphael
1885 - Alem dos muitos melhoramentos que a actual direcção tem dispensado a este estabelecimento, creio que a direcção, logo que esteja habilitada, procederá a reparar uma sensivel falta que tem o hospital, mandando canalisar a água tanto para uso domesticos, como para banhos, o que não é dispendioso, porque não falta água no poço do hospital. Bem Hajam.3 (pág. 164)
Canalização de água desde a ribeira de Lam-Cá-Chun até à povoação da Taipa
1886 - (VIII-3) - … canalização de água desde Lam-Cá-Chun até ao mercado projectado na Taipa. O mercado e a Repartição das Obras Públicas, projectos recomendados pelo Governador, estão em fase de conclusão. (…). 1
1889 - (IV-27) - A povoação da Taipa recebe água da Ribeira Lam-Cá-Chun. Esta água é boa, mas a que é mais usada, porque a ribeira é distante, é salobra. A informação parece conducente ao estudo de futura canalização.1
Relação das Fontes,Poços e de Exploração
A partir do processo n.º 29 da Secretaria Geral do Governo da Província de Macau, de 1 de Outubro de 1908, relativo à análise das águas de Macau e Ilha da Taipa, elabora-se o seguinte quadro das fontes, poços particulares, poços públicos e de exploração, então existentes. Dada a dificuldade pela falta de nascentes, de abertura de fontes e poços, é provável que esta lista datada de 1908, coincidisse ou quase, com as existentes nos finais do século XIX :
Fontes
Fonte da Avenida Vasco da Gama
Fonte da Inveja
Fonte da Flora
Fonte das duas caras - chafariz da Flora
Fonte do Lilau
Fonte da Solidão
Fonte da Guia
Poços particulares
Rua do Ferreira de Almeida n.º 11
Rua de S. Lázaro n.º 48
Rua do Pde António n.º 45
Palácio do Governo
Rua do Campo n.º 115
Praia Grande n.º 45
Hospital Civil de S. Raphael
Residencia do Sr. O. S´Oliveira (Calçada do Gaio à Guia)
Rua do Ferreira d´Almeida n.º 18
Rua do Volong n.º 11
Rua do Amparo n.º 39
Pagode da Barra
Propriedade do Sr. Silva Mendes (Tanque dos mainatos)
Fábrica de Panchões (Tanque dos Mainatos)
Pagode de D. Maria (Mong-Há)
Poço do Britador das Obras Públicas
Quinta do Alferes (à Bela Vista)
Poços públicos
Tap-Seac
Rua do Hospital
Largo do Senado
Rua da Tercena
Becco do Lilau
Rua de Sá-Kong
Becco d´Agulha
Rua da Collina
Rua de S. Lourenço
Becco da Barraquinha
Rua do Chunambeiro
Travessa dos Mercadores
Rua do Mastro
Rua de Patane
Pateo da Vidigueira
Travessa do Matadouro
Travessa do Pagode da Barra
Largo do Pagode da Barra
Luong-Sin-Tong (Villa da Taipa)
Wing-Long-Chiang (Villa da Taipa)
Poço em frente do Jardim da Flora
Poço em frente da estação da polícia (Mong-Há)
Largo das Taboas (Mong-Há)
Rua do Norte (Mong-Há)
Poços de exploração
Poço n.º 1 (Mong-Há)
Poço n.º 2 (Mong-Há)
Poço n.º 3 (Mong-Há)
Poço n.º 5 (Mong-Há) 4
A População face aos Pontos de Abastecimento de Água
No recenseamento da população de 31 de Dezembro de 1878, mandado proceder por ordem do Governo provincial, a globalidade do Território contava já com 68 086 habitantes: 4 476 Portugueses e 63 532 Chineses estando incluídos 8 935 habitantes marítimos e 8 127 das ilhas.
O recenseamento da população deu em resultado só para a cidade 59:959 habitantes, dos quais:
Portugueses………………4:431
Chins…………………55:450
Estrangeiros………………78
Nestes números comprehendem-se os habitantes marítimos, que em 1871 eram em número de 10060, e em 1878 de 8935.
Estes recenseamentos estenderam-se à Villa da Taipa, de Colowane, e a outros portos daquelas ilhas, onde se contavam 45 portuguezes e 8082 chins.
Faz-se notar o facto de relativamente ao censo de 1878, em cujo preâmbulo publicado no Boletim de Província de 1880 se expressa ter havido grandes preocupações de rigor na sua elaboração, Adolpho Loureiro em 1884, levanta as maiores dúvidas quanto aos valores finais apresentados, estimando um valor global de 100.000 almas contra as 68.086 indicadas no censo.
Qualquer que tenha sido o valor exacto da população do Território de Macau nos finais do século XIX, é inegável existir então uma fortíssima pressão demográfica face às necessidades de abastecimento de água e ao número de fontes e poços que hoje podemos estimar, quase todos com água imprópria para a alimentação: 7 fontes; 17 poços particulares; 24 poços públicos; 5 poços de exploração.
*Arquitecto.
1 Beatriz Basto da Silva - Cronologia da História de Macau - 3.º Vol., DSEJ
2 (Constantino José de Brito, Lúcio Augusto da Silva, Leoncio Alfredo Ferreira, Miguel Ayres da Silva, Tancredo C. do Casal Ribeiro - Boletim da Província de Macau e Timor, de 5 de Janeiro de 1884 - Relatório da Comissão Encarregada de Estudar os Melhoramentos da Cidade de Macau, criada pela Portaria Provincial n.º 89 de 28 de Julho de 1883, datado de 20 de Novembro de 1883 - págs. 2 a 7 )
3 Augusto Pereira Tovar de Lemos - Relatório do Serviço Médico da Província de Macau e Timor, referido ao ano de 1885, datado de 1 de Fevereiro de 1886- págs. 148 e 149, 154 a 156, 162 a 164, 170 e171, 180 a 182 - in Boletim da Província de Macau e Timor - Série de 1886.
4 Segundo a presente numeração dos poços de exploração, um deles deveria encontrar-se desactivado.