Música em natureza
Frederico Rato*
Andantino
Preocupam-se os musicólogos com a explicação da origem da música e sobre essa origem tecem as mais estranhas e imaginosas teorias, todas elas muito interessantes. A tão rebuscadas e criativas explicações, peço para juntar a minha, muito simples: a música começou com o enlevo de mãe, adocicando a voz para entreter ou aconchegar o filho, porventura imitando os sons mais suaves da natureza. Do mesmo prosaico modo, talvez o pai tentasse reproduzir a viração a assobiar nos acidentes do abrigo, as aves a cantar ao desafio, penduradas na imensa mancha verde, ou ritmar o bater de mãos ou o tamborilar dos dedos nos lenhos. Depois, poderá ter vindo a soprar de uma cana oca, o vibrato da tripa seca de um animal, a pele de bicho esticada, a imitar o trovão, anunciador de chuva redentora, a pancada mais ou menos intensa de um toco noutros materiais, cadenciada ao modo do pauliteiro, a lembrar o rumor do regato entre as pedras, a zanga dos elementos, o estrondo da queda de água, o marulhar ritmado da onda. E quando os metais se sucederam à pedra, e vibraram como varas verdes à passagem da ventania, foi um ar que se lhes deu!
A polifonia natural, a harmonia do mundo, foi cedendo o passo à polifonia criada ou recriada, à harmonia da criatura, criador da sua própria música!
Scherzo
A opereta em Shatin merecia vir a Macau, o quarto do hotel está gelado, o ar condicionado no máximo, em Janeiro de noventa e oito, mês dos gatos, sinto-me tiritantemente apartado da vida e isolado do mundo, mas estou em Central, Hong Kong, China, são quase duas da manhã de um dia que nasceu ontem, prematuro e atarefado. Tenho de acabar o escrito para a "Lótus" e, amanhã, tenho de arranjar o malfadado ovo de dinossauro para o meu afilhado, biólogo em potência e conservacionista. Já o tenho debaixo de olho, o ovo, agora é só uma questão de preço. Já estive a namorá-lo, o ovo, é enorme, cheio de lama mal raspada, para se dar ares, e o vendedor diz que está cheio de fibra por dentro, foi a Londres para ser espreitado, o ovo. Não sei o que é fibra, talvez uma corruptela de febra! Se não conseguir levar aquele, sei onde há outro, mais em conta, não tão grande e menos convictamente jurássico. Mas tenho de cumprir esta prenda de Natal atrasada, de apaziguar a excitação produzida por aquela minha boca provocatória, à vista de peixes e peixinhos, algas e couves-do-mar, ratos-da-índia-tontos-da-roda, irmãs em tempo real e tutankamons de internet: " Então e não há nenhum ovo de dino?" Os olhos salivaram e as papilas saltaram das órbitas. "Em Macau, há ovos de dinaussauro?". "Bem, em Macau não sei, mas em Hong Kong, até há um mês atrás, havia, mas como vou trazer um ovo de dinaussauro chinês para Portugal, com as proibições da CITES? Ele disse-me que se o ovo fosse bom, pô-lo-ia num dos museus da especialidade em Portugal e eu perguntei-me: quem consome o quê e quem preserva o quê? E prefigurei uma mãe mesozoíca cantando gracinhas para o seu menino, com voz melada, "põe-põe-dinozinho-o-ovo" e o dinaussauro, do alto do seu pescoço, a pensar "não me dês música, o que querem é os meus ovos para os venderem daqui a uns tempinhos, debaixo do balcão, nos mares da China.
Marcia
Assim que começamos a ter consciência, fornecem-nos um pretenso descodificador para os sons, que os alinha em dois pelotões: musicais, a marchar a compasso: dó, ré, mi, fá, sol, lá, si, a bom ritmo, harmonicamente entrelaçados, cheios de melodia. Ó Dorémi, faz sol, lá! Si! Logo a seguir, os ruídos: catrapum, pimba, zastraspás, brrrum, pum, zippp, roammm, chi, g´ma. Todos, musicais e ruídos, retratos e recriações de ambientes.
Coisa mais falsa esta dos sons musicais e dos ruídos! Pancadas de timbale produzem ruído? Talvez. Que dizer, então das percussões violentas de Beethoven, quando o destino lhe bate a porta, na 5ª Sinfonia? Será que são musicais por causa do contexto?
Não há, definitivamente, a dicotomia fundamentalista sons musicais e ruídos. Há música, criatura gerada pelo homem criador, integrada por sons os mais diversos, os existentes e os inventados, bons e menos bons, mais ou menos ritmados, melodiosos ou harmónicos, consonantes ou dissonantes, suportáveis ou insuportáveis. E siga a marcha!
Rasga o coração
Falava português quem porventura melhor combinou sons musicais com pretensos ruídos e, nesta mescla, espelhou o ambiente natural e fez jus à matriz da harmonia do mundo, com todas as suas componentes, enriquecida com a inventiva e a sensibilidade que a emoção musical gera: Villa-Lobos (1887-1959), a natureza em movimento feita música.
Pode ser considerado ocioso afirmar que a vida, sob as suas mais diversas formas, revelações e ambientes é a origem da música. Mas é de justiça apreciar a inspirada e abundante obra musical de Heitor Villa-Lobos como um imenso louvor à vida, mãe da música.
A título de exemplo, e apenas na linha ambiental/naturalística (diria ecológica) que ora abordo, atrevo-me a sugerir a audição do exuberante ballet "Génesis", do poema sinfónico "Amazonas", como sensual argumento do pai do compositor, Raul Villa-Lobos, "Erosão (Origem do rio Amazonas)", outro poema sinfónico, inspirado numa lenda índia do sol e da lua, "Alvorada na Floresta Tropical", o tranquilo nascer do astro que faz renascer a vida na Terra, tão do gosto do panteísta Villa-Lobos e "Uirapuru", um ballet para a orquestra largamente inspirado na música folclórica que o compositor recolheu nas suas longas viagens pelo Brasil.
Mas se não tiver nem tempo nem paciência para ouvir aquelas peças, a maior das quais dura vinte minutos, não pode deixar de reconciliar-ser consigo e com a natureza de cada vez que ouvir o "Chôros nº10 (Rasga o Coração)" para Coro e Orquestra, integrando um festival de percussão, que o orquestrador/poeta/músico escreveu em 1926, dirigido na estreia pelo próprio.
Diz o compositor (tradução livre do inglês): "Este trabalho representa a reacção do homem civilizado perante a natureza estreme, a sua contemplação dos vales do Amazonas e das terras de Mato Grosso e do Pará. A vastidão e a grandiosidade da paisagem deslumbram-no e cativam-no. (…) Vivem pessoas naquelas terras, embora em estado selvagem. A sua música está cheia de nostalgia e de amor e as danças são ricas em ritmo. Ouve-se a canção brasileira "Rasga o coração" e o coração do Brasil bate em uníssono com a terra brasileira".
A peça não dura mais de treze minutos. Quando foi executada no "Hong Kong Cultural Center", em Fevereiro de 1990, a plateia pensou que o tecto desaparecera e o céu repousava sobre a sua cabeça.
*Advogado. Melómano.