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O lótus na Índia
K. D. Madan*
Na poesia e nas alegorias românticas de muitas literaturas -- tanto clássicas como modernas -- é vulgar atribuir à rosa um estatuto principesco.
Mas se inventássemos um barómetro, que no reino das flores, pudesse medir e avaliar as castas aristocráticas, a linhagem real, e o estatuto nobiliário de cada espécie de flor, o primeiro a ter a honra de ser coroado imperador seria seguramente o lótus, e a rosa tornar-se-ia nada mais do que uma dama da corte, não obstante as famosas palavras de Shakespeare "Aquilo a que damos o nome de rosa, por nenhum outro nome o seu perfume seria tão doce".
O famoso botânico Professor Goodyear, no seu aclamado tratado A Gramática do Lótus diz que o lótus detinha um lugar de destaque na arte dos gregos e dos egípcios, servindo de motivo para ornamentos, cerâmica e fachadas de templos.
De acordo com Wilkinson, reconhecido académico de história do Antigo Egipto, era costume, durante as festas da nobreza, presentear cada convidado com uma flor de lótus, que deveria manter na sua mão até à entrada do salão de recepção, onde os criados colocavam, à volta do pescoço ou da sua cabeça, um bolbo ou flor de lótus de maneira a que esta ficasse suspensa na sua testa.
Discórides, famoso médico grego, no seu "Materia Medica", compilado no primeiro século D.C., incluía um capítulo inteiro sobre o lótus. Pliney, historiador e académico romano, contemporâneo de Discórides, falando sobre o método egípcio de fazer pão de sementes de lótus com leite ou água, dizia, "Enquanto quente, não há nenhum pão que seja mais saudável e leve do que este".
Alguns investigadores dos nossos dias avançam com a teoria que a Nelumba Nucifera (nome científico de uma das variedades de lótus) tenha sido introduzida no Egipto, vinda da Índia por volta de 2500 A.C..
Aparte a veracidade desta teoria sobre a propagação do lótus, não existem dúvidas sobre a sua existência na Índia desde os primórdios da história, ocupando sempre uma posição de destaque. Referências ao lótus ocorrem de forma frequente na antiga literatura Sânscrita, assim como na mitologia Hindu tal como ela se nos apresenta hoje. Nos murais das mundialmente famosas grutas de Elephanta perto de Bombaim, existem inúmeras representações da flor de lótus, quer como símbolo religioso quer como simples ornamento.
Contudo, antes de mergulharmos no imenso labirinto mitológico hindu que rodeia o lótus, vejamos os seus aspectos mais terrenos no contexto indiano.
O florir do lótus conhece muitas denominações na Índia, cada qual mais floral do que a anterior. Só no Sânscrito, existem várias, destacando-se Ambuja, Padma ou Pankaj. O seu nome comum em Hindi é kamal, e nas suas variantes Punjabi e Kashimiri é respectivamente kanwal e Pamposh. O governo da Índia proclamou, há muitos anos, a flor de lótus como flor nacional, tendo em 1977 criado um selo postal especial comemorativo do evento.
O lótus cresce, em condições variadas de solo e clima, mesmo em áreas rochosas, mas mais frequentemente em zonas pantanosas. De facto, em Sânscrito o nome pankaj significa nascido da lama.
E, com razão, o local favorito do lótus para criar raízes, crescer e florir é um leito lodoso. O lótus cresce geralmente em charcos com profundidade de 40 a 60 cm, de leito barrento e salpicado de sedimentos orgânicos. Depois de plantada, a planta floresce durante 6 a 7 anos, por vezes mais, mas com o adensar da vegetação, cada planta necessita de cuidados (em regra entre 2 a 3 anos). Peixes e caracóis são geralmente utilizados para eliminarem larvas, musgo e outras pestes.
O lótus, bonita flor aquática, é encontrada por toda a Índia. As suas folhas são esverdeadas, macias como cetim e geralmente com 60 a 90 cm de diâmetro. Os seus longos pecíolos são macios, podendo por vezes ter pequenos espinhos. Estas flores são solitárias, grandes e em diferentes tons - branco, rosa e ocasionalmente azul-arroxeado.
Na Índia, como aliás noutros sítios, as flores de lótus são usadas como ornamento e como oferenda nos templos. As flores colhidas podem resistir ao transporte se apanhadas 1 a 3 dias antes do previsto florir. Algumas décadas atrás, as pétalas do lótus eram usadas como fonte do perfume de lótus. Actualmente, este perfume é uma mistura de ingredientes aromáticos sintéticos.
O florir do lótus, ao contrário da rosa, seu arqui-rival no coração dos amantes das flores, produz por vezes um fruto. Esse fruto (chamado kamal-doda) tem a forma de pião, com a parte superior atingindo o diâmetro de 7 a 10 cm. Quando aberto o fruto, deparamos com 10 a 30 pevides de forma arrendondada ou oval, embutidos em cavidades separadas no topo, que quando amadurecem atingem o tamanho de amendoins. O lótus produz frutos abundantemente na época quente e chuvosa. Diz-se que este fruto tem um grande valor nutritivo.
E se o fruto não fosse suficiente para cimentar a posição de destaque do lótus em relação aos seus rivais no topo do reino das flores, existe ainda o rizoma da planta (kamal-kakadi na área que fala hindi, e bhen no Punjab) que é comercializado e consumido como vegetal. O rizoma do lótus mede entre 30 a 60 cm de altura e 3 a 6 cm de diâmetro. O que distingue este rizoma de outros é que ao longo do seu comprimento existem contínuas cavidades. Experimentem cortar o rizoma na diagonal e notarão algumas cavidades grandes no seu interior rodeadas por várias cavidades concêntricas de dimensão capilar. Ligeiramente fibroso, este rizoma farináceo é uma delícia vegetariana e é comido frito ou assado com as cavidades recheadas com várias especiariais. A conserva kamal-kakdi é um prato muito apreciado em qualquer mesa indiana.
Constatámos que as partes comestíveis do lótus são as pevides do fruto e o rizoma. Contudo, a lenda atribui a uma refeição feita de flores de lótus a propriedade única de induzir o comedor a um estado de tranquilidade, letargia, contentamento e parcial esquecimento de um passado de preocupações. Apesar de estas propriedades nunca terem sido comprovadas por nenhuma comunidade, o poeta inglês Tennyson imortalizou-as no seu famoso poema "Os comedores de lótus", onde um grupo de marinheiros abandonados numa ilha deserta, sobrevivem durante um largo período de tempo alimentando-se apenas de lótus, que aí crescia abundantemente, começando a olhar assim para o seu passado:
Aí sentados e sorrindo interiormente,
Olhando para campos devastados;
Crestas e fome, pestes e terramotos,
Fundos ribombantes e areias ferozes,
Lutas clangorosas, cidades em chamas,
Barcos a pique e mãos que rogam,
Mas eles sorriem e descobrem música
No meio de um canto fúnebre.
Inexoravelmente, do prazer que o paladar do lótus é capaz de providenciar, movemo-nos agora para a posição que o florir do lótus ocupa na tradição e religião hindu e budista.
Vedas, a mais antiga e venerada das escrituras Hindu, composta por hinos, proclama um ser cósmico superior. Com o decurso do tempo, os rituais foram crescendo e a crença do ser superior deu lugar ao conceito da trindade, em que 3 divindades nomeadamente Brahma, o criador, Vishnu, o conservador, e Shiva, o destruidor, controlavam juntos não só o destino da humanidade mas o de toda a criação. A supremacia, inter se, nunca foi estabelecida nas escrituras que comentam o culto da trindade, mas com a passagem do tempo o número de devotos de Vishnu ultrapassou o das outras divindades. Na sua interpretação das escrituras, as outras duas divindades, de uma maneira ou outra, reconhecem a primazia de Vishnu. Assim convencidas, passaram a dirigir as suas preces para Vishnu como ser superior.
Diferentes lendas dimanaram desta parte da mitologia. Mas, com medo de nos extraviarmos e sermos levados noutra direcção, regressemos ao significado do lótus na narrativa. Segundo uma das lendas, Brahma, o criador, nasceu de um lótus que cresceu do umbigo de Vishnu. A mulher de Vishnu, Lakshmi, é a deusa da fortuna. Vishnu normalmente é representado sentado num lótus com Lakshmi ao seu lado reclinada numa folha de lótus. Noutra representação, Vishnu tem 4 mãos e numa delas segura um lótus. Lakshmi, quando representada sozinha, também segura um lótus. Nota-se que, em muitas dessas representações, o pedestal de lótus de Vishnu é mostrado em posição elevada em relação à terra impura, do mesmo modo que, na natureza, o lótus se ergue majestosamente sobre as águas pantanosas.
Estas manifestações em redor da flor de lótus, segundo os estudiosos, sugerem, de igual maneira, a suprema importância que a água sempre deteve, como elemento precioso no clima e ambiente indiano.
A flor de lótus, com posição claramente estabelecida no pensamento e religião hindu, viu difundida o seu simbolismo com o alastrar do budismo da Índia para o resto do oriente. Um de entre os ritos que cresceram em parte na China e no resto do oriente, adoptou-o como seu motivo, o lotus-sutra. Os tronos de lótus nos altares budistas, aonde quer que o budismo tenha chegado, são sempre de 8 pétalas, representando o nobre caminho óctuplo, ou Astangita Marg, ensinado por Gautam Buda para o alívio da miséria humana.
A primazia do lótus no reino das flores mantém-se inquestionável.
*Intelectual. Escritor.