Crónica



Visão da identidade

António Duarte*

  É Macau um território urbanisticamente desordenado? Uma cidade visualmente "pimba"? Um monumento ao mau-gosto? Um emaranhado urbano onde a poluição também entra pelos olhos?
  O jornalista Henrique Monteiro, do semanário Expresso, ao visitar Macau pela primeira vez, descreveu a cidade do Nome de Deus como lhe parecendo "a Reboleira do Oriente", confessando não entender a atracção dos portugueses pelo confuso e incaracterístico enclave. É inevitável. Quando um patrício se estreia em Macau, a realidade visual e cultural que se lhe depara não conjuga com o seu imaginário, anos e anos alimentado de clichés de uma terra misteriosa e romântica nas fraldas da China. Primeiro é o choque visual. Todos estaríamos à espera de encontrar um Macau mais chinês e mais português, que não o resultado indefinido da fusão de dois universos numa cidade labiríntica mas moderna. Qual de nós, expatriados, não confessou algum dia que esperava de Macau mais exotismo, mais folclore étnico, maior preservação das pedras vivas da História? Quem nunca lamentou que em vez de prédios chapa três e de colmeias gradeadas com a roupa a secar, não continuassem de pé as casas Ming, os casarões de estilo europeu, as mansões antigas de influência japonesa, ombreados de pagodes, templos e pavilhões chineses? Quem, no seu íntimo, nunca achou mais atraente uma mulher de cabaia, uma aguadeira com chapéu cónico de palha, um velho em elegante fato de seda?
  É aqui que reside o nosso principal preconceito etnocêntrico. Filhos de uma Europa supostamente civilizada, organizada e up to date, efabulamos sobre o Oriente identificando-o com o passado, com uma cultura milenar, com um visual anacrónico. Excita-nos a expectativa da diferença, do invulgar, do típico povo-objecto.
  Conheci a China há dez anos, quando o povo chinês era mais ingénuo, mais simples, mais sorridente para os estrangeiros. Estética, humana e culturalmente, prefiro a China maoísta à China actual. Mas será legítimo olhar assim para o Oriente? Pelo prisma do nosso egoísmo? Suponho que alguns portugueses que visitam Macau pela primeira vez se surpreendam por, afinal, os chineses estarem cada vez mais "ocidentalizados". Ó heresia!, também vivem em apartamentos e moradias modernas, como os ocidentais; também usam ar condicionado, guiam automóveis caros, vestem em boutiques, falam por telemóvel…
  É inegável que o desenvolvimento económico de Macau, com incidência a partir dos anos 80, tornou a cidade menos romântica, menos tranquila, mais confusa, mais ofegante, menos harmoniosa. Desfeiou-a, poluiu-a, sufocou-a.
  Contudo, as transformações físicas geraram uma nova Macau, onde coexistem todas as referências possíveis de uma velha cidade que chocou com o futuro.
  É uma coexistência desordenada, mas é essa qualidade que repele e atrai. Como se a cidade avançasse no permanente conflito de uma dialéctica de contrários, Macau assim é uma terra viva, um sítio para todos os gostos e para a soma desses gostos. Talvez seja isto a que o arquitecto Manuel Vicente chamou "a glória do vulgar".
  Confesso que gosto. Acho piada a este kitsh espontâneo que pulula como erva daninha. As varandas com grades, a confusão da malha urbana, o ar de feira que tem Macau, as placas comerciais em português caótico, o chau-min de cabos e fios que Guilherme Um Vai Meng nunca deixa de sinuar nos seus desenhos de ruas e becos da memória colectiva.
  O meu amigo Kwok Woon inspira-se nas paredes rugosas, húmidas, manchadas e escavadas dos bairros históricos para pintar quadros geniais. Quando começaram a recuperar o Bairro de São Lázaro, ele deixou escapar um "Oh, eu gostava mais como estava dantes".
  Moro a dois passos do Porto Interior e tenho por sombra tutelar a igreja de São Lourenço. Vivo no meio de dois mundos sem fronteiras claras. É esta envolvência irracional que me atrai nas explorações que empreendo pela cidade que julgo conhecer. Percorro a pé o seu mapa mais obscuro.
  Detenho-me à noite em pátios decadentes e solitários a imaginar o passado. Passeio por vielas que nunca dormem, quase tropeço em ratazanas aflitas, as baratas vêm-me ao encontro. Deambulo junto ao porto de águas paradas, entre nuvens de cheiro a peixe abandonado. Não me habituei; aprendi a gostar deste huis-clos, desta Babilónia de formigas obreiras, nascida de indecifráveis diásporas e de surreais misturas.
  A cidade-estado de Singapura, um território onde também coabitam culturas orientais com o legado ocidental, ocorre-me como antítese de Macau. Vejo-a como uma espécie de Suíça do Oriente. Chata, desnatada, opressiva. E no entanto, um modelo de urbanismo e de civilidade. O jornalista Andrew Higgins, correspondente em Hong Kong do jornal britânico The Guardian, dizia-me recentemente que lhe mete impressão não sentir em Macau a classe média e a sua cultura urbana. Higgins terá razão. É com dificuldade que se encontram cá pela terra um móvel moderno, um sofá, uns cortinados, que não sejam iguais aos dos vizinhos e amigos. Não existe uma livraria internacional, à maneira da Bucholz, onde possamos passar uma tarde inteira sem torcer o nariz. Concertos, bailados, representações teatrais escasseiam, mas em contrapartida abundam os casinos, os clubes nocturnos e os bares de kareoke.
  A poluição visual tem muito que se lhe diga. No caso vertente, ela integra de forma decisiva o que se convencionou chamar "a identidade própria de Macau". Que o novo-riquismo inconsequente das mais chegadas cidades da China não passe nunca as Portas do Cerco.
  
  *Jornalista.